Bruno Terra Dias & Carolina Machado Durães
A sociedade moderna tem a necessidade de aprimorar os mecanismos de inclusão social e cidadania, possibilitando que todo indivíduo tenha amplo acesso à educação, aos meios de comunicação, à participação na vida pública e à vida em comunidade. A dignidade da pessoa humana somente será garantida se proporcionados meios para que cada um possa desenvolver suas aptidões.
No Estado Democrático de Direito, a acessibilidade e a inclusão surgem como um conjunto de medidas apto a eliminar barreiras sociais e garantir o mínimo de dignidade aos indivíduos, realizando igualdade material. É o que assegura a Constituição de 1988, no seu art.205, disciplinando que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Palavras-chave: Direitos e garantias fundamentais. Inclusão. Educação. Acessibilidade. Estado.
I – Aspectos históricos
A educação é um direito recente, a despeito da integração do seu discurso no cotidiano há décadas. No decurso de uma vida, o próprio conceito assumiu contornos outrora impensáveis. A leitura de obras clássicas facilmente engana o desavisado, que pode ser levado a imaginar que em outros países, especificamente no que se convencionou denominar, discriminatoriamente, de “primeiro mundo”, a educação seja um direito já longevo, cuja origem se perde nos milênios. Não é bem assim. Considerando a ocidentalidade e culturas de sua influência, mesmo um estudo superficial do tema é suficiente para informar que a educação somente foi massificada, efetivamente ou nos limites do discurso político, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Uma longa e milenar caminhada houve, não sem percalços de toda ordem.
Se o tema geral da educação já é sujeito a dificuldades de toda ordem, a referente a pessoas com deficiência é ainda mais recente e está muito distante de alcançar foros de generalidade em nosso país e no mundo. Uma ligeira incursão no mundo greco-romano, o que havia de mais sofisticado no tempo respectivo pode ser convincente. Werner Jaeger[i]1dedica sua consagrada obra à compreensão do fenômeno grego na antiguidade, havendo múltiplos tópicos referentes a educação, mas não a alguma pretensão de educação massificada, mas sempre em um sentido elitizado, fora do alcance da imensa maioria numérica, uma vez que a educação, no sentido de formação de cultura superior, é notadamente um termo de vocação aristocrática. Aquilo a que denominamos de virtude, o conceito mais próximo da areté, desde os primórdios helênicos, sempre foi havido como atributo da nobreza aristocrática, afastado dos homens comuns e dos escravos[ii]2:
Tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de areté é frequentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é, não só para designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça. Ao contrário, o homem comum não tem areté e, se o escravo descende por acaso de uma família de alta estirpe, Zeus tira-lhe metade da areté e ele deixa de ser quem era antes. A areté é o atributo próprio de nobreza. Os gregos sempre consideraram a destreza e a força incomuns como base indiscutível de qualquer posição dominante. Senhorio e areté estavam inseparavelmente unidos.
Habilidades de nobreza e dominância, aristocráticas, portanto. Algo que distingue, não está ao alcance de todos. Ao homem comum, apenas o necessário a cumprir o que Hesíodo poeticamente revela em Os Trabalhos e os Dias[iii]3. Assim é que se extrai da obra que o estulto, ao contrário do sábio, só compreende por consequência dos próprios atos, nunca por antecipação ou por observação, quando aborda, logo a partir do verso 42, o Mito de Prometeu e Pandora, comparando a inteligência de Prometeu à de seu irmão, Epimeteu, cuja escassa compreensão o leva a aceitar Pandora como presente de Zeus, causando tantos males à humanidade. A educação, tal como compreendida hoje, envolvendo habilidades de leitura e escrita, era para poucos, bem poucos.
O mundo romano, cujo poeta maior foi Públio Virgílio Maro, ou, simplesmente, Virgílio, igualmente tinha nas habilidades que denominamos educação um diferencial, até mesmo para criar poeticamente a epopeia da origem mítica do povo romano, traduzindo a elegância da erudição efirmando o grande poeta como referência universal para a compreensão do que se tornou, muitos séculos após, a Europa. Já nos primeiros versos da Eneida, assim é[iv]4.
A decadência do Império Romano e o advento da Idade Média implicaram isolamento de povos que, a despeito da geral comunicação em latim, mantiveram resquícios de suas línguas de substrato, constituindo por essa situação as línguas românicas, com todas as peculiaridades do evento. O latim superposto às línguas de substrato era o falado, com todos os matizes decorrentes, nada de sofisticações próprias de uma linguagem literária, sendo as atuais línguas de origem latina descendentes dessa língua vulgar[v]5.
O grande vulto da Idade Média, já nos limites aproximativos da Renascença, representativo do melhor em estudos, dedicação e resultados, inaugurando a língua propriamente literária italiana, foi Dante Alighieri. Sua erudição é indiscutível, maior intelectual de sua época, distinto do homem comum, que ainda não havia alcançado as letras. O ideal grego de nobreza aristocrática, muito distinta da condição da imensa maioria. Sua obra é monumental e alcança amplitudes como política, filosofia, religião e filologia. A educação não é um direito e o acesso é extremamente restrito. Na estrutura do pensamento medieval, a inadmissão da contradição e a linearidade do tempo pontificam com a escolástica[vi]6, ser e não ser simultaneamente é impossível, o ocorrido não pode não ter ocorrido, causa e efeito não podem inverter posições, do que se extrai que a posição de cada qual na sociedade é definida e não pode ser alterada, senão por vontade divina. O povo, deseducado, assim deve permanecer, pois esse é o seu lugar; para ser diferente, somente por vontade de Deus.
Já no século XVI, João da Cruz escreveu o belíssimo poema “Noite Escura”, dedicado ao encontro de Deus, mas que também, como expressão da inexauribilidade da verdade[vii]7, pode ser interpretado como elevação pelo estudo, pela devoção, pela leitura, pela educação do homem e do espírito. Um verso merece destaque: “Oh noche amable mas que el alborada”. Se a noite é a busca, a educação está em seu contexto, o caminho para Deus é exigente de uma educação ainda fora do alcance da maioria. No entanto, já é indicativo da necessidade de se estender a todos, massificar, uma educação que nos eleve à dignidade de sermos recebidos pelo Criador; até que alcancemos essa condição, a noite é o caminho a superar a educação a atingir.
Nas andanças da educação, chega-se ao século XIX com primeiras considerações à pessoa com deficiência em três prismas propostos por Foucault sob a rubrica “Anomalie”[viii]8: o monstro, o indivíduo a corrigir e a pessoa masturbadora. Afastadas do convívio social, brutalizadas, postas a correções mecânicas, pessoas que poderiam ser integradas pacífica e produtivamente, ser fonte de alegria e realizações, foram postas à margem e levadas a extremos que ninguém que pudesse habitar o conceito de “normal” resistiria. Sob rotulagem de medicalização e educação, produziu-se a mais escancarada agressão. O discurso constante do vocabulário foucaultiano merece parcial transcrição[ix]9:
O indivíduo “anormal”, do qual, desde o final do século XIX, tantas instituições, discursos e saberes se encarregaram, deriva tanto da exceção jurídico-natural do monstro, da multidão de incorrigíveis dos institutos de correção, quanto do universal segredo das sexualidades infantis. Na verdade, as três figuras do monstro, do incorrigível e do onanista não vão exatamente se confundir. Cada uma se inscreverá em sistemas autônomos de referência científica. … a construção de uma teoria geral da degeneração que, baseando-se no livro de Morel … vai servir, durante mais de meio século, ao mesmo tempo, de marco teórico e de justificação social e moral, para todas as técnicas de localização, de classificação e de intervenção sobre os anormais; a organização de uma rede institucional complexa que, nos confinamentos da medicina e da justiça, serve tanto de estrutura de “recepção” dos anormais como de instrumento para a “defesa” da sociedade; finalmente, o movimento pelo qual o elemento que aparece mais recentemente na história (o problema da sexualidade infantil) vai recobrir os outros dois, para converter-se, no século XIX, no princípio de explicação mais fecundo de todas as anomalias …
A teoria da degeneração, com tantas repercussões de exclusão, foi mais um instrumento de época, manejado pela ciência, para identificar, classificar, apreender, afastar e tratar portadores das mais diversas “perversões”, tidas como hereditárias, servindo de discurso político, até universalizar-se como uma espécie de “saber” adotado por todas as correntes políticas[x]10:
… A teoria da degeneração permitiu vincular a noção de perversão com a herança. O conjunto perversão-herança-degeneração constituiu o núcleo mais sólido das novas tecnologias do sexo. … A degeneração, enquanto princípio de enfermidades ao nível do indivíduo e da população, serviu como ponto de articulação de mecanismos disciplinares e mecanismos reguladores. … A noção de degeneração faz referência a um elemento patológico, involutivo no nível da espécie, das gerações. … A psicanálise rompeu com o sistema da degeneração, retomou o projeto de uma medicina do instinto
sexual, mas liberada de suas correlações com a noção de herança e, portanto, de todo racismo ou eugenismo. … A novidade do século XIX foi o aparecimento de uma biologia do tipo racista centrada em torno da noção de degeneração. O racismo não foi, em primeiro lugar, uma ideologia política, mas científica. Sua utilização política foi levada a cabo primeiro pelos socialistas, por gente de esquerda, antes que por gente de direita. … A noção de degeneração permite isolar, recortar uma zona de perigo social e dar-lhe, ao mesmo tempo, o estatuto de enfermidade. …
A triste constatação, até a virada do século XIX para o século XX, é que, por todos os ângulos que se procure encarar a questão educacional e o acesso em favor do portador de deficiência, houve apenas barreiras, nenhuma chance verdadeira. A história da humanidade, nesse aspecto, com o recorte da civilização ocidental e seus rebentos, é um desastre cuja correção só encontrou alguma luz no período subsequente à II Guerra Mundial e ao surgimento da ONU, com sua Declaração Universal dos Direitos Humanos e uma série de documentos internacionais posteriores, inaugurando uma época de oportunidades jamais vislumbrada pela maioria da população mundial e, muito especialmente, para pessoas portadoras de deficiência.
- Paideia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira [adaptação do texto para a edição brasileira Monica Stahel; revisão do texto grego Gilson César Cardoso de Souza], 6a edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. ↩︎
- Id. Ibid., p. 24. ↩︎
- HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias, introdução, tradução e comentários Mary de Camargo Neves Lafer, 2a edição, São Paulo: Iluminuras, 2019. ↩︎
- VIRGÍLIO. Eneida, edição bilíngue, tradução Carlos Alberto Nunes; organização, apresentação e notas João Angelo Oliva Neto, 2a edição, São Paulo: Editora 34, 2016, p. 73. ↩︎
- AUERBACH, Erich. Introdução aos Estudos Literários, tradução José Paulo Paes, São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 74/5. ↩︎
- ECO, Humberto. Arte e Beleza na Estética Medieval, tradução Mario Sabino Filho, Rio de Janeiro: Record, 2010, pp. 257/64. ↩︎
- PAREYSON, Luigi. Verdade e Interpretação, tradução Maria Helena Nery Garcez e Sandra Neves Abdo, 1a edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11. ↩︎
- CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores, tradução Ingrid Müller Xavier, revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, pp. 32/4. ↩︎
- Id. Ibid., p. 33/4. ↩︎
- Id. Ibid. pp. 97/8. ↩︎