Lençóis do Rio Pardo, uma pequena comuna entre dois mundos, sempre se orgulhou de ser setentrional e primaz, não por sua fundação, mas pelo desbravamento. Tocado seu território por famosa expedição partida de Porto Seguro, com relatos de Aspilcueta Navarro, sua história conta o amor de muitos pela inalcançável Antônia. Economia algodoeira fez fortuna e desgraça sob a liderança espiritual do Padre Guilhermino, cujo equilíbrio repousava na visão, no toque e na maciez dos pontos altos do vale do externo da respeitável Clemência, carola, virgem afamada de tempos perdidos e mãe extremada de Raphael e Miguel. Fatos, pessoas, relatos e imaginação de quem da terra se agradou, tendo lá nascido, ou desejado como sua, integram as lendas do período formador daquela que se tornaria uma das maiores referências dos sertões.
O ano da revelação de Antônia, que tinha encantos diferentes dos de sua mãe, para quem parecia terem os irmãos Valença composto o sucesso controverso de Lamartine Babo, coincidiu com o de lançamento da célebre marchinha carnavalesca no Rio de Janeiro. Anos antes, quando ainda criancinha, na primeira infância, sua beleza, de aparência dúbia, por vezes delicada e outras tantas demonstrando forte personalidade, causava constrangimentos a quem diziam haver prevalecido de relações domésticas com sua verdadeira amada. Coronel Olegário Ribeiro ostentou, contra olhares de todos, e censura severa de sua esposa, Dona Doroteia Joaquina Ribeiro, o orgulho de uma paternidade proibida; parecia realizar, dentro de casa, a escrita de Oliveira Vianna, em páginas carregadas de racismo e justificativas para o deleite forçado da virilidade lusa sobre mulheres negras e mulatas. No momento azado, encaminhou a criança a cuidados de um casal de sua confiança, na distante cidade de Rio das Araras, também conhecida pelos calhaus encontrados em seu território.
Na morada de infância e adolescência, seus pais de criação foram bem remunerados para dar-lhe a melhor educação, do que se desincumbiram com indeciso sucesso. No Grupo Escolar Coronel Marcos Lourenço, foi aluna de Ana Amélia Lourenço, neta do patrono do educandário, professora de nomeada e diretora por décadas. Aprendeu a ler e escrever, fazer as quatro operações matemáticas, costurar e bordar, cantar A Marselhesa com a devida entonação, economia doméstica. Aprendeu, também, a usar da aparência frágil para conseguir objetivos, a ser intransigente e determinada, a prever situações e elaborar estratagemas; mas isso tudo não constava da escola regular.
A formosura dos anos de transformação, como se tivesse mantido existência em crisálida, cambiava entre claro e escuro, como se o dia revelasse apenas o que lhe fosse conveniente, mantendo na escuridão das noites sem luar tudo que pudesse contrariar a imagem, laboriosamente cultuada, de menina frágil, submissa e apta a contentar o marido a quem fosse prometida. A morte do Coronel Olegário Ribeiro, quando contava 14 anos de idade, foi notícia que reverteu em seu desfavor, pela míngua de recursos dos seus pais de criação, levando-a a assumir, em noites especiais, sob pseudônimo de jovem mulher feita e muita maquiagem, o sustento da casa; leilões a que os locais não tinham acesso, em festas privadas que reuniam homens de bem e de bens, mesmo da capital e o próprio presidente do Estado. Algo entre o angelical corpo e o febril olhar, a voz ligeiramente rouca e proporções incomuns às outras mulheres, tornava insaciáveis seus poucos frequentadores, de cujas fontes amealhou o suficiente para retornar a Lençóis do Rio Pardo.
O ódio que lhe devotava Dona Dorotéia Joaquina Ribeiro não era cego, mas avisado e bem concebido. Seus filhos homens, Mário, Darcy e Juca, jamais haveriam de se aproximar daquela mulher, cujos vestígios da infância poderiam impressioná-los, embora, naqueles tempos difíceis, esses resquícios não fossem mais que aparência ou jogo de vontade daqueles jovens. Mesmo que não soubesse, ao exato, com quem confrontava, a viúva do Coronel era abertamente animosa à novidade feminina surgida. O mais suscetível dos filhos, também o mais novo, Juca, se expandia em arroubos românticos naquele fracassado ano de 1932. Educados para suceder no mandonismo paterno, a orfandade prematura fez dos herdeiros testemunhas da ascensão de novo Coronel.
Homem viúvo, com numerosa família toda criada, já ultrapassados os sessenta anos, que somente encontrou seu lugar de projeção ao extinguir a sombra do antigo desafeto, Corbyniano Aquino Lima fez seu nome com lutas, valentia, disposição e enfrentamentos, amealhando relativa fortuna com criação e comércio de gado. Havia mais autopromoção que verdade em sua bravura, porém ninguém se dispunha a fazer prova com risco próprio. Seus homens multiplicaram, ainda que sob o signo de certa desconfiança, quando ficou claro que a viúva não tinha talhe e os filhos do Coronel Olegário Ribeiro eram muito novos e inexperientes para assumir os encargos deixados pelo pai. Apesar da corpulência e do destemor, havia a expectativa de que Coronel Corbyniano seria passageiro, de efêmera duração, pois as forças físicas já se tinham comprometido em mais de uma ocasião. Na verdade, seu mando serviria de preparação ao que nem os iniciados em Ifá seriam capazes de prever.
Antônia, fazendo-se notada, mas sem alarde, tornou à terra natal, ciente de quem era e da mistura de sangues que corria em suas veias, apresentando-se como filha de Leonardo e Valdivina, omitindo o fato de serem seus pais de criação. A filha da falecida Isabel, com seus sensíveis traços, olhos quase amendoados e pele que instigava o acobreado, além de quartona, provocaria, a qualquer que soubesse sua história, a indagação: haveria algum cafuso, curiboca ou caboclo em ascendência não muito distante? Naqueles sertões, a miscigenação era a regra; o que os antigos diriam ser mácula de sangue tinha escassas consequências, embora a sociedade não escapasse a muitos preconceitos comuns.
A terra, os rios, a fauna, a flora, o clima e a alimentação típica catrumana, em duas gerações, eram capazes de transformar homens e raças, tudo adequando ao meio ambiente. Entretanto o exotismo de Antônia, na idade já propícia ao casamento, mesmo ali, impressionava. Muitos quiseram aproximar-se, mas seus pais de criação não permitiam; ela própria parecia divertir-se com o assédio, deixando seus pretendentes desesperançados. Não faltaram pedidos, como não faltaram recusas. Juca Ribeiro, contra todas as defesas maternas, foi apenas mais um dentre tantos recusados pelos superficiais caprichos da jovem; mas ela sabia bem o que estava fazendo, a influência cristã não permitiria serenidade em transgressões aos limites estabelecidos pela consanguinidade de meio irmãos.
Após invejável lista de rejeições, causando desinteligências familiares e rivalidades insuspeitas, haveria de um pretendente apresentar-se com força suficiente para romper a sequência de insucessos, ou como portador de interesses superiores à resistência. Não haveria de ser alguém tão novo que a impetuosidade pudesse revelar-se temerária; não convinha quem se anunciasse desprovido de patrimônio necessário ao atendimento de ambições irreveladas; maturidade, força patrimonial, respeitabilidade e imposição política eram qualidades essenciais. O Coronel Corbyniano Aquino Lima, com seus 67 anos, titulava posição política, prestígio, uma boa dose de arrogância, propriedades e o que mais se entendia necessário às aspirações de poder que guardava e não convinha mostrar.
Quando se aproximou, o Coronel era esperado, sem demonstração de ansiedade, como se faz em emboscadas, deixando que o alvo se coloque na melhor posição para ser atingido. Nenhuma relação amorosa, apenas o cálculo dos negócios, em que um pensa levar vantagem enquanto o outro sabe os prejuízos que impõe e causará. Afastados de toda sinceridade. Acostumada ao jogo de iluminação e obscurecimento, Antônia mantinha seus segredos, enquanto lia, confortavelmente, as vulnerabilidades circunstantes e deliberava, com frieza cirúrgica, o passo seguinte. Nesse contexto, o casamento não deveria tardar, Coronel Corbyniano não poderia ter fôlego nem oportunidade para meditação, deveria ser atingido na vaidade personalista que a prepotência sustenta.
A vida de Antônia transitou, no mais importante e criativo de sua existência, entre o passado, que se desejava superado, mas teimava em ser praticado cotidianamente, e o presente, que se pretendia superior, mas fracassava em romper com ideias arraigadas desde a colônia. Entretanto, havia, em Lençóis do Rio Pardo, chegada há alguns anos da Bahia, mais precisamente de Conquista, outrora Imperial Vila da Vitória, desmembrada de Caetité, uma família que trabalhava em conjunto e que estava fadada ao domínio social, econômico e político. Quatro irmãos começavam, quase despercebidamente aos locais, a se destacar como portadores das qualidades necessárias à predominância em futuro próximo: Roberto Mendes, o mais velho, industrial, fundador da fábrica local de produtos de cerâmica; Eleutério Mendes, farmacêutico prático; Genésio Mendes, advogado, técnico em contabilidade, professor da Escola Municipal Dona Amelinha Ribeiro; Girleno Mendes, o mais novo, médico, respeitado e único clínico da região.
Antes de findar o ano de 1932, para o dia 18 de novembro, sexta feira, foi marcado o casamento. Às 11:00 h., a cerimônia civil, discreta, sem pompa nem circunstância, como recomendavam naturais reflexos de resistência ao desbancamento da ordem religiosa pela ordem civil na República. Afinal, na consciência do povo, e sob forte influência da Igreja Católica, o sacramento do casamento cumpria papel de dever moral e cívico, recebendo a celebração puramente civil, imposta pelo republicanismo como única válida para a formação legítima da família, como mancebia. Para as 18:00 h. estava marcada a cerimônia religiosa do casamento, esta sim um fato social de larga repercussão na região, para demonstrar a força política e a prolongada virilidade do noivo.
Cumprida a cerimônia civil, como os noivos não se considerassem casados aos olhos de Deus, o que era essencial para o sentimento religioso, Antônia retornou à casa dos seus pais de criação, enquanto o Coronel aguardava impacientemente pela noite, na ânsia por deflorar e sifilizar sua jovem e bela esposa, de cuja virtude toda a cidade era testemunha, pela frustração de quantos dela tentaram proximidade. A residência de Leonardo e Valdivina era relativamente confortável para os padrões locais de época. Ao início da tarde, antes de começar os preparativos e arrumação para o esperado momento, a noiva retirou-se para seu quarto, que tinha janela abrindo para os fundos da construção; precisava de um instante de descanso. Os pais de criação não se importaram, sabiam que jamais tornariam às privações passadas e de que sepultada restaria, em horas, toda lembrança de expedientes de vida dos quais não haveria mais mister lançar mão.
Coronel que é Coronel não deixa para depois o que sente vontade de fazer, ainda que contravenha regras sociais, a Igreja ou o Estado. Por isso, por não temer Padre Guilhermino, por sua personalidade impositiva, entrou pela casa de sua noiva, já sua mulher perante a lei, e o que aconteceu na sequência somente a filha de Leonardo e Valdivina sobreviveu para dizer. Gritos, tiros, dois mortos e a viúva, intocada, chorando sobre o corpo do marido, antes do casamento religioso. Orlando Lima, o enteado, morto, sobre a cama, com o torso despido e alvejado por 4 tiros; Coronel Corbyniano Aquino Lima também morto, segurando um revolver, sem mais um projétil a ser disparado, fulminado por um infarto; Antônia, imagem da emoção abalada, com parte de suas vestes rasgada e hematomas pelo rosto.
Desse momento surgiu a história local da viúva inalcançável, que adquiriu grande patrimônio, associou-se vantajosamente aos irmãos Mendes, comandou fazendas e homens pelas décadas seguintes, decidiu eleições, autorizou e reprovou juízes, promotores de justiça e delegados de polícia, instituiu serviços, foi amada por muitos e detestada por poucos, tornando-se o mais poderoso Coronel de seu tempo. De sua vida pretérita, ninguém soube ou se atreveu falar. Fez fama e deitou-se com ela.