Recordar talvez fosse sua principal ocupação, naqueles tempos de conversas escassas, em que os convites não mais chegavam e os poucos visitantes, desinformados, mal sabiam o que dizer ou perguntar. Uma vida agitada, tanto quanto seu temperamento, feita de arroubos e ações intuitivas, repentes frequentemente fracassados. Ao lado dos derrotados, seu orgulho era dizer que jamais havia deixado de cumprir seus deveres, não importando o regime da política vigente, e que a companhia dos vitoriosos, com o tipo de pensamentos com que sustentavam suas ações, não dignificaria sua biografia. A despeito de desdenhar dos mais fortes, não lhe acometia o pejo das louvaminhas à coragem vil e despótica de certos tiranos populistas.
Nos seus mais de 80 anos, testemunhados com vagar, relatou, a parentes, estudantes e pesquisadores, o crescimento da Cidade de Minas, desde os tempos em que João Leite da Silva Ortiz se fixou nas terras que iam da Serra do Congonhas até a Lagoinha, então conhecidas como “Cercado” e, posteriormente, Arraial do Curral del Rey. Referências a aspectos históricos da região, confrontos coloniais, reflexos do Império e do advento da República eram citações em tom veraz, embora deslocadas do tempo de sua existência. Havia nisso um certo charme, o estilo de contar, com aparência de assistente presencial, o que leu e ouviu, acrescentado de opiniões e suposições, para suprir as lacunas do seu conhecimento.
Embora sua preferência declarada fosse o local onde passou a maior parte da vida, não raro desviava o rumo da conversa. Era assim, como que atravessando o próprio discurso, que criava deslizamentos históricos e geográficos, de difícil percepção para quem não conhecesse sua narrativa e a diversidade dos tempos e dos lugares, inserindo opiniões sobre outros acontecimentos. De certa forma, o “Cercado” e, depois, Curral del Rey, funcionava como um sorvedouro, que ampliava ou retraía, sempre intencionalmente, para tornar mais rico e interessante o próprio relato sobre acontecimentos nem sempre tão atrativos. Era assim que, da região que viria a ser concedida, por Carta de Sesmaria, a Silva Ortiz, cambiava para o Capão da Traição. Personalidade de expressão oral, fazia parecer, sem o dizer, ter sobrevivido ao episódio terrível, comandado por Bento do Amaral Coutinho, nas cercanias do Arraial Novo, légua e meia de distância, deixando claro que os descobridores do ouro de aluvião deveriam ter a exclusividade da exploração do metal naquelas terras de minas; na visão do velho, os emboabas deveriam, com seu autoproclamado governador, retornar os gerais.
O relato, não sem os tradicionais avisos, desvios, deslizes e afrontas propositais, seguia para aquela que seria Vila Nova da Rainha, por foral de D. Brás da Silveira, e rememorava o encontro de Antônio de Albuquerque com Manuel Nunes Viana, na grandeza reinol e no desprezo ao emboaba, tudo ao melhor estilo de certeza palmilhada no que não admitia haver lido e decorado. Olhos cerrados, parecia criar, quando não, aparentar esforço, para recitar. Como fosse o próprio Cláudio Manoel da Costa, descreveu em prosa o que foi poema; teria se inspirado no grande árcade, ou se apropriado da narrativa poética para, igualmente, elogiar a riqueza mineral das terras em início de exploração? Não se sabe. Mas não tinha o mesmo engenho e arte daquele que se apresentou como Glauceste Satúrnio, no épico ofertado ao Conde de Bobadela, para afastar a imagem de Albuquerque, havida por tantos como heroica.
A linha de coerência da história, em suas estórias, estava na entrecortada e instável constituição de uma continuidade evocativa da Nação e do patriotismo, ainda que à custa de acender velas a dois santos, louvando o governo forte de Assumar e o espírito indômito do Motim de 1720. Dizia que os olhos de Felipe dos Santos não se compraziam com a submissão à cobrança do quinto, nas casas de fundição da Capitania que seria criada nos próximos meses daquele ano. Sonhava e teimava que ali, naquele momento de confronto, nascia o sentimento de pátria mineira, esquecido de que os potentados locais, patrocinadores do levante, eram todos lusos, com interesses contrariados. Mas não se importava com o contra-argumento, e se fixava em que o importante era a resistência, pois ela era a demonstração do amor ao torrão e inspiração à posteridade. Sem embargos, louvava Assumar pela forma como debelou a sedição, restabeleceu a ordem e se afirmou no governo; a admiração pela força não deixava de ser apanágio que o velho não escondia, embora maldissesse o delegatário do poder real, naquelas circunstâncias de soberania fragmentada.
Até hoje não se sabe se por preguiça, desinformação ou preferência, a toada saltava, de 1720 para 1789, como se quase 70 anos houvessem sido soterrados na desimportância. Selecionava por predileção de assuntos, ou se esquecia de todo o acontecido no entremeio? Não ignorava Maria da Cruz, que, ocasionalmente, chegou a elogiar, por sua determinação e bravura, enfrentando todas as cardas condições do sertão inóspito, sem deixar transparecer os traços do que se esperaria para uma matrona do início do século XVIII, que participou ativamente dos fatos de 1736, eternizados nas páginas, recheadas de imaginação, de Diogo de Vasconcelos. A História Média de Minas Gerais estava entre seus livros, há muito em um canto de estante, mas visitado e anotado. Talvez a condição de primeira inconfidente, mulher de personalidade, rica proprietária no eixo da conexão entre o Norte sanfranciscano mineiro e Salvador, que desafiou a coroa Portuguesa e tudo perdeu, não o animassem a tamanho desvio da terra de moradia, embora o Rio das Velhas, na Barra do Guaicuí, seja testemunho vívido de pertinência.
Chica da Silva não desfrutava de sua admiração, nela não depositando confiança. Mesmo ciente de que se não tratava da devassa que ocupou significativos espaços no imaginário popular, ainda assim, a ela não reservava elogios ou reconhecimento. A imagem do contratador, ensandecido de paixão, cobrindo de mimos e extravagâncias, que somente o Tejuco poderia proporcionar, aquela mulher síntese, era a antítese de tudo quanto havia feito, pregado e cultuado em sua vida. Declaradamente, não apreciava os trabalhos de Cacá Diegues, Walmor Chagas ou Zezé Mota. Incompreensão, preconceito ou intolerância? Que fazer, senão discordar do desapreço em dois tempos: na história e no que há de ficção, na escrita e no cinema? O arraial, de onde brotavam o diamante e a mais vasta pedraria, era, também, o do jugo do Livro da Capa Verde, criador de um mundo exclusivo, sob controle e ordens tão drásticos que Chica da Silva haveria de ser compreendida como personagem natural e aguardado.
Outra curiosa ausência dos seus relatos era Joaquina Bernarda, nascida na cidade primaz das Minas e berço, tal qual sua orgulhosa vizinha, do que de melhor produziu a Capitania, no setecentos e no oitocentos. A despeito de tudo quanto tenha realizado, no curso de uma vida reconhecida e empreendedora, contra suas melhores qualidades havia o peso de haver sido o pai, D. Jorge de Abreu Castelo Branco, natural de Viseu, um advogado que, a certa altura da vida, já viúvo, ganhou fama de sórdido, trapaceiro e corrompedor, capaz de ser objeto da fúria de um marido, cujo lar teria sido maculado. Nem mesmo o fato de haver o advogado sido ordenado presbítero, e mudado para Pitangui, passando a ser conhecido como “Padre Doutor” Jorge, serviu de leniente, ao crivo da razão discriminatória, de fundamento determinista, que em terras portuguesas ganhou fórmula de tradicional expressão. Casou-se menina, aos 12 anos, com o Capitão de Milícias Inácio de Oliveira Campos, isto após rejeitar publicamente o comerciante Manuel de Souza e Oliveira, frustrando arranjo paterno. A personalidade forte, e a extrema determinação de alcançar seus objetivos, fizeram com que aceitasse desafios, superasse as dificuldades daqueles ermos de sertões, entre os rios Pará e São Francisco, superasse, em fama, na administração das fazendas, o nome do próprio marido, tornando-se, talvez, a maior personalidade que o Pompéu já registrou em toda sua história.
O surpreendente hiato, mais uma dúvida ou intenção aguçadora da curiosidade dos interlocutores, habituais ou não, faria crer ao desavisado uma proximidade inexistente entre fatos, pessoas e ideais. Mas o grupo de intelectuais idealizadores da conjuração, que nunca saiu do papel, era composto por homens familiarizados com a literatura iluminista. Por não se haver com o esperado sucesso em causas judicializadas, declaradamente não apreciava magistrados, advogados e demais profissionais do Direito. Este, certamente, o motivo que o levava a admirar Cláudio Manuel da Costa e Tomaz Antônio Gonzaga, por sua obra literária, relegando-os aos espaços menores da antipatia pessoal quando considerava o grande advogado e o magistrado promovido ao Tribunal da Relação da Bahia. De maneira geral, não considerava o movimento inconfidente como dotado da importância que tantos de nós, incluindo a mim, reconhecemos. Alvarenga Peixoto, na sua narrativa, não teria sido mais que um fanfarrão endividado, exibicionista de Bárbara Heliodora, poeta sem refinamento e advogado subalterno. Novamente, a questão do poder e do enfrentamento. Como de hábito, a falta de apoio popular, a pretensão elitista, interesses meramente patrimoniais e não verdadeiramente constitutivos dos ideais de pátria e nação, associados à imprevidência em medir forças contra um oponente imensamente mais forte foram os motivos encontrados para as condenações, emanadas do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, que a maioria foi levada a suportar.
Caso diverso era o do alferes, da tropa paga da Capitania de Minas Gerais, sem qualquer favor um homem valente e determinado, a quem julgava desprovido de razão, mas dotado de extraordinária força de caráter. A forca, a decapitação, o esquartejamento, a dispersão das partes do corpo entre as capitais da Colônia e a Capitania de origem da conjuração, a pregação de sua cabeça em praça pública de Vila Rica, o arrasamento e salgamento das terras onde erigida sua casa, a infâmia imposta às gerações sucessivas de sua estirpe, e o confisco de bens, pontuava, eram previsíveis, e cabia ao mártir haver evitado. Mas a proclamação da República e o reposicionamento da memória do insigne Joaquim José, motivaram uma reavaliação em perspectiva da eternidade. Tivesse lido a sentença condenatória e constataria, desde o início, que o alferes e seus companheiros planejavam a superação do jugo lusitano, na extensão da Capitania, através da independência, adotando-se a forma republicana. Entretanto, apreciações pessoais, ainda que desconformes ao juízo da posteridade, devem ser mantidas em integridade, como advertência contra juízos apressados.
Das mulheres que povoaram a fertilidade de sua mente, desde algum momento da infância, mas cujo nome não pronunciava, Anna Jacinta de São José ocupava lugar de destaque. Originária das terras do oeste da Capitania, onde João Gonçalves Chaves, supostamente seu primeiro habitante, requereu provisão de Capela em 1765. No início do século XIX, a menina, cujo pai era desconhecido, desabrochou em flor pelo Sertão da Farinha Podre, deslumbrando o ouvidor Joaquim Inácio da Silveira Mota, que a raptou e fez sua amante, instalando-a em palacete situado na vila de Paracatu do Príncipe. À semelhança do que já havia acontecido no Tejuco, décadas antes, o ouvidor foi a extremos por sua amada, chegando a obter a reintegração do Sertão da Farinha Podre à Capitania das Minas Gerais, em desprestígio da Capitania de Goiás. Abandonada pelo ouvidor, retornou à terra de onde foi raptada, rica e de modos diferenciados, sendo recebida com hostilidades por mulheres que a julgavam perigosa. Construiu novo palacete, mobiliando-o luxuosamente, para levar um estilo de vida que a notabilizou na história, sendo conhecida como a mulher cuja beleza alterou o mapa do Brasil.
O advento da independência causou reação dúbia. Afinal, o ideal inconfidente havia sido, em parte, atingido, mas o jugo de uma família portuguesa ainda se impunha. A imprudência sonhadora de 33 anos rendeu uma afirmação soberana que, incrivelmente, se curvava à mesma família que imperava na metrópole colonial. Nessa época, o desimportante arraial nada percebia, à distância dos fatos políticos e de suas consequências.
Na perspectiva da história, entre Colônia e Império, o personagem de sua maior identificação talvez tenha sido Bernardo Pereira Vasconcelos, cognominado Proteu, por sua adaptabilidade e versatilidade, alternando posições e opiniões políticas, conforme o mais acendrado pragmatismo recomendaria. Da mesma forma que o personagem mitológico, o velho, imitando ou imitado por Bernardo Vasconcelos, mudou de substância e de forma política, conforme a época e as exigências de uma suposta ética da razão prática. Seu imperativo categórico era a sobrevivência, nos mais diversos ambientes, flertando com pensamentos antagônicos, desde que assim se alcançasse eficiência estratégica. Das revoltas, manifestadas contra o Estado, resultava uma concórdia de reconhecimento à força governante, logo que possível estabelecer um código de convivência, não importando, nesse caso, regime ou ideologia. Como um mote de autoconvencimento, repetia a identificação de motivações na tendência inata do ser humano ao progresso, ao aperfeiçoamento físico e intelectual, que nos distingue como espécie na natureza. A contradição, sob esse ângulo, não seria detrimentosa, mas deveria ser saudada como benéfico predicado que permitiu a evolução da humanidade.
No alvorecer do Império, chamava atenção ao velho a família Ottoni, onde brilharia o espírito de Teófilo, que abraçaria as ideias de Thomas Jefferson no Sentinela do Serro, levando-as à Revolução Liberal de 1842, da qual saiu vencido. Apesar desse fracasso, nutria por ele uma admiração. Tenacidade, determinação, convicções fortes, aptidão para autodefesa demonstrada no Salão do Júri, em Ouro Preto, carreira pública pontuada por altos e baixos, o espírito desbravador revelado na empreitada pessoal que levou à criação de Filadélfia, tudo isso compunha, a seus olhos, uma singularidade a ser reconhecida. Não conseguia negar a grandeza do Ottoni, por isso era capaz de admirá-lo. A firmeza da proclamação “São direitos inalienáveis, imprescritíveis e sagrados, a liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência à opressão”, à frente de um juiz, no julgamento a que submetido, após prisão em Santa Luzia, era conduta digna de respeito, embora pudesse soar como desafio à autoridade. Nada, porém, significa concordar. O Império atraía sua antipatia, mas pretensões revolucionárias estavam em rota de colisão com a regra da sobrevivência. Admirar e respeitar não equivaliam a concordância.
Por razões não esclarecidas, pouco mencionava o Império e suas personalidades que, seguramente, admirava e, possivelmente, aprovava, ao menos em parte. Não havia descaso, até por afirmar a formação do sentimento de brasilidade justamente nesse período. Ainda assim, apreciava outro republicano da mesma fase de vida nacional, também serrano, de ascendência italiana, nascido no ano de antecedência da unificação da pátria paterna. A vitória sobre a pobreza e os infortúnios da vida, a coerência em fundar o Clube Republicano, o próprio abandono da vida política, por desencanto com os rumos iniciais da República, e o retorno como Presidente do Estado de Minas Gerais, onde se notabilizou, e de onde se esperava fosse alçado a Presidente da República, faziam de João Pinheiro da Silva uma personalidade digna de menção e honras. Rara concessão ao universo político.
A criação e instalação da nova capital mineira merecia uma conversa inteira, totalmente à parte do quanto mais houvesse a dizer, de memória, por leitura ou ouvir dizer. As discussões entre políticos da região mineradora, da Zona da Mata e do Sul de Minas, em uma guerra de argumentos pró e contra a transferência da capital, da economicamente estagnada Ouro Preto para a Várzea do Marçal, ou, até mesmo, por solução separatista, ganhavam a vivacidade e argúcia de um linguajar recheado de personalismos. Com tal veemência proclamava seu conservadorismo nesse tema, que convencia a qualquer um tratar-se de autêntica derrota: Afonso Pena sancionou a lei que determinava a transferência da capital, escolhendo o Arraial do Curral del Rey para local da nova sede do governo mineiro. Nunca se consolou da desesperança transgeracional, que a tantos ancestrais havia acometido após decisões, em momentos cruciantes da história local, regional ou nacional.
Mineiridade ouro-pretana e brasilidade imperial, um sincretismo político que esquecia o caráter revolucionário dos concidadãos inconfidentes e o conservadorismo renitente da nobreza decaída. Mas inconstâncias e disrupções, políticas e históricas, não o incomodavam, senão quando inservíveis aos propósitos do encantamento verbal a que se propunha, para enredar, confundir e discutir, do alto de sua sempre alegada experiência, de tantas décadas, quem se apresentasse ao desafio dialogal. Sua metade de sangue itálico repreendia o Herói de Dois Mundos, por sua aventura farroupilha, embora compartilhasse o entusiasmo pela unificação da pátria de Dante; o quarto de sangue cafuso comandava contradições entre jogos de escravidão e liberdade, tradição e banzo, compreensão do mundo que desvanecia em idiossincrasias; por fim, o quarto de sangue lusitano tinha saudades criativas e aventureiras de quem se arroja para além da Taprobana.
A mudança de topônimo, no sexto ano após a instalação da nova capital, por Bias Fortes, não agradou. Cidade de Minas era ideal para batismo legal de uma capital planejada. Não podia esquecer, ou perdoar, tamanha injustiça política. Transferir a capital, entendia, já teria sido um erro; mudar o topônimo do erro era uma recidiva condenatória daquela comuna infestada, doentia, onde o bócio era endêmico, que viria a ser conhecida como Cidade Jardim. Recordava, então, da piscosidade do ribeirão Arrudas, onde queijos eram lavados sem que qualquer órgão público se arvorasse em interditar o consumo por malferimento a posturas sanitárias.
A primeira metade do século XX foi tumultuada. Da presidência de Artur Bernardes, Elvira Komel e o voto feminino, ditadura Vargas, a atuação de Francisco Campos, a ascensão de Benedito Valadares, Juscelino na prefeitura, credenciando-se ao governo do Estado, a espantosa diversidade da atuação de José Maria Alkimim, uma sequência de políticos e políticas a estremecer a pátria. Governo em Estado de Sítio, revolução, conquista eleitoral feminina e morte de sua mais ardorosa militante em Minas Gerais, autogolpe idealizado e executado, surpresa na política mineira, um governador inesperado e seu preferido na administração municipal da capital, além de uma inteligência abarcando a Nação. Admirava Bernardes e Vargas pelo vigor na organização de governos fortes, embora desmerecesse Getúlio por injustiças patrocinadas pelo autogolpe, com ameaças e prisão na própria família. Tardiamente, somente após suas filhas terem completado o ciclo universitário, reconheceu Elvira Komel e suas aliadas na afirmação de direitos das mulheres. Visivelmente, não gostava de Valadares, JK e Alkimim, desdenhando, por igual, daqueles que, após o Manifesto dos Mineiros, formaram a UDN; a negação dos políticos era sua ode à política, seu modo de dignificar a vida política, livrando-a dos seus profissionais.
A eleição de Getúlio Vargas, em 1950, recebia considerações especiais. O contraste da força do ditador, do autogolpe de 1937, inaugurando o Estado Novo, com o fragilizado governante do “mar de lama” acicatado pelo Corvo, não poderia escapar à sua percepção. O episódio do suicídio era contado com sarcasmo. Costumava dizer que, após o autoextermínio, teria o ex-ditador, simulacro de estadista democrata, doado certo objeto de uso pessoal a um preferido da vida política. Desmerecia, assim, uma vida política em colapso, bem como desacreditava uma das mais brilhantes carreiras políticas do século, então em ascensão, como era do seu feitio.
Se a arte é sobrevivência, a adaptabilidade, acima da coerência, fazia sentido adotar o janismo, louvar os arroubos mais desastrados daquele que rejeitou a vontade do povo e legou à posteridade o caos. Não o estranhava qualquer cobrança. Elogiava a proibição do biquíni, a condecoração de Che Guevara, a substituição de bebidas alcoólicas por suco de laranja e outras medidas inócuas, com a mesma desenvoltura que condenava as “forças ocultas” que teriam levado Jânio à renúncia.
Ser neutro em relação a João Goulart, que considerava um fraco, fantoche imitador do suicida de 1954, era uma forma de não se comprometer no momento de oposição de forças, de esquerda e de direita, que desejavam assumir, à força, o governo nacional. Venceram, em 1964, as forças de direita, como era previsível. O pragmatismo da sentença “rei morto, rei posto’ transcendeu o regime. Considerava que a redemocratização implicava em dissolução dos costumes, que seria um valor menor, diante da ordem ufanista, patriótica e nacionalista, que deveria presidir o progresso a que, miticamente, estaria reservado o futuro.
Não chegou a admirar a obra de Tancredo e Montoro, mas conviveu bem com a imitação de Jânio, em seu fervor de caça aos marajás, reeditando a vassourinha da moralidade de quase trinta anos antes. Novamente, a seu julgamento, um governo com promessa de força, que não vergaria ante os rituais e exigências dos parlamentares. A imitação, como o original, não chegou ao final do mandato. A Fernando Henrique Cardoso, acusou de ser vendilhão do patrimônio público. Lula e Dilma não escaparam a seu juízo de reprovação por, supostamente, envenenar o serviço público e viciar a sociedade com programas oficiais de confisco, via tributos, e distribuição da renda da classe média e compra de votos.
A viuvez, a solidão e a idade provocaram desaceleramento do ritmo da vida. Mudou-se de Belo Horizonte para viver melhor seus últimos dias na cidade escolhida por Chico Xavier. Foi feliz. Desceu calmamente a colina, sem rebeldia ou arrependimento, na companhia da funesta executora dos contratos de existência. Reencontrou a unidade com Juraci. Diverte-se agora com visitas esporádicas, sob disfarces, em sonhos, memórias e imaginação.