Discurso proferido em 2007, no Seminário Toda Criança em Família, realizado pela AMANS, em Montes Claros
A Acolhida e a partilha são a única modalidade de um
relacionamento humano digno, porque somente nelas a
pessoa é exatamente pessoa, ou seja, relação com o
infinito ....É por isso que na acolhida de um pobre e na
Acolhida da pessoa mais amada deve residir, em última
instância, a mesma Gratuidade.” ( Luigi Giussani)
Nossas vidas são marcadas por decisões. Todos os dias, conscientemente ou não, assumimos o encargo de deliberações, algumas bastante simples, outras de extrema complexidade. Os efeitos respectivos podem ser imediatos ou diferidos, esgotando-se de uma só vez ou protraindo-se no tempo. Ao final, nossas vidas, e as de todos que nos cercam, a existência incógnita na multidão, estarão vinculadas aos efeitos de decisões próprias, de terceiros ou do Estado, através de leis, políticas públicas, respeito e reconhecimento a direitos, ou de sua ausência.
Se, em termos gerais, a formulação e implementação de respostas a desafios cotidianos da cidadania pode, descritivamente, obedecer uma racionalidade aparentemente erma a influências emocionais, no plano individual, e dos pequenos grupos, obedece a prescrições que estão para muito além de uma legalidade ancilar, alcançando motivações de ordem moral e ética, ponderando emoções e sentimentos que superam o alcance dos esquemas teóricos puros. Curiosamente, a narrativa oficial escamoteia o que não se possa adequar a esquemas de racionalidade estrita, a partir de postulados previamente estabelecidos, como se a conduta do ator social fosse retilínea, sem qualquer concessão. Há um certo orgulho oficial quanto a isso.
É possível tomar posição, nos mais diversos temas, na ordem das relações privadas, como na ordem das relações com o Poder público, ou na ambiência das interrelações no espaço público, instigado por razões de ordem profissional, familiar, da experiência personalíssima, pela observação atenta dos fatos sociais, movido por princípios de inspiração religiosa ou intramundana. Importa, sempre, ter em consideração, naquilo que nos anima, a contemplação de duas realidades distintas, como a normativa e a da ação, o direito e sua materialização, ou o insulto moral. A temática da criança, especialmente considerando seu afastamento do protagonismo histórico, no Brasil, motivando relações de constante dependência, recomenda atenção à profunda discrepância entre esfera pública (entendida como normatividade) e espaço público (entendido como local das interrelações sociais) a que atada sua existência.
Édipo: uma tragédia
Como já visto, vem a propósito esboçar uma relembrança do mito de Édipo, com valoração de sua função identificadora dos conflitos próprios da vida familiar, para extrair da tragédia elementos que comecem a formar um quadro de desestruturação.
A tragédia desenrola-se a partir do enlace de Cadmo e Harmonia, tendo o rei gerado Polidoro, que por sua vez gerou Labdaco[1]. Labdaco gerou Laio, falecendo quando o filho contava apenas um ano. Laio foi então criado pelo rei Pélops e, na idade adulta, vulnerando as regras da hospitalidade, violou Crisipo, filho do rei, que veio a suicidar. O fato levou Pélops a amaldiçoar a todos os herdeiros do sangue de Labdaco, condenando-os à extinção.
Criadas as condições necessárias ao desenrolar da tragédia, Laio casa-se com Jocasta, igualmente descendente do rei Cadmo. Advertido por um oráculo do templo de Apolo, em Delfos, de que seria morto pelo filho que gerasse, e que este mesmo filho se deitaria com a própria mãe, o rei de Tebas sodomiza sua rainha, com o fito de evitar prole. Entretanto, em uma oportunidade o rei cede à paixão e engravida Jocasta.
Nascida a criança, e sendo do sexo masculino, Laio, receoso da realização do oráculo, determina realize-se seu sacrifício por meio de exposição no monte Citeron. O pastor a quem confiada a tarefa, amarrando os tornozelos da criança para expô-la suspensa, não consegue leva-la a cabo, e entrega a criança a um criado do rei de Corinto, Pólibo. Pólibo e Mérope, que era estéril, acolhem a criança como filho próprio, apelidando-a Édipo, por ter os pés inchados (conseqüência de terem sido os tornozelos amarrados).
Criado como filho sangüíneo por Pólibo e Mérope, ignorando sua condição de adotivo, Édipo, então jovem adulto, viu-se afrontado em um banquete por um homem que o chamou de “filho suposto”. Mesmo diante da negativa dos monarcas de Corinto, abalado com o que ouvira, decidiu consultar o templo de Apolo, em Delfos, recebendo o oráculo segundo o qual haveria de matar o próprio pai e deitar-se com sua mãe, gerando uma prole abominável.
Atormentado, Édipo retira-se de Delfos e, em sua caminhada, defronta-se com um pequeno grupo, sendo agredido e revidando com a morte do agressor e dos seus acompanhantes.
Seguindo seu caminho, afastando-se de Corinto por horror de se cumprir o oráculo, Édipo chega a Tebas, que passava por tempos difíceis, vitimada por um monstro, a Esfinge, que devorava a todos com quem confrontava, por não decifrarem o enigma: qual animal tem, pela manhã, quatro pés, à tarde dois e à noite três. O herói dramático, respondendo corretamente ser o homem tal animal (quando na mais tenra infância arrasta-se de quatro; adulto, anda com suas duas pernas; na velhice, apoiado por um bastão, desloca-se sobre três apoios), não apenas livra Tebas dos males que a afligem, mas motiva o suicídio da própria Esfinge.
Como prêmio pela façanha, recebe Édipo a mão da própria rainha, Jocasta, insciente de que trata-se de sua própria mãe, com ela deita-se e tem quatro filhos: Etéocles e Polinices, Antígona e Ismênia.
Abatendo-se sobre Tebas novo flagelo, que a interpretação de um oráculo do templo de Apolo, em Delfos, sugere ter origem na falta de punição do responsável pela morte de Laio, resolve Édipo, então monarca já consagrado por sua sabedoria, encetar investigação com a seguinte determinação:
Seja quem for o culpado, proíbo a todos, neste país onde tenho o trono e o poder, que o recebam, que lhe falem, que o associem às preces e aos sacrifícios, que lhe dêem a menor gota de água lustral. Quero que todos, ao contrário, o lancem para fora de suas casas, como a imundície de nosso país…
Nas investigações, ouvido o vidente Tirésias, tudo se esclarece, Édipo toma ciência de sua condição de parricida e companheiro incestuoso da própria mãe, Jocasta, que resolve encerrar a própria vida enforcando-se. Diante do corpo sem vida da própria mãe e mulher, Édipo não se contém e retira das vestes da extinta colchetes que crava nos olhos, exilando-se cego do trono e do país que governou.
A tragédia Antígona relata o triste fim dos quatro filhos do infeliz monarca e a extinção de todos os herdeiros do sangue de Labdaco.
Aí está, na versão teatral que atravessou milênios, o drama da formação e da destruição da família, que se repete, com nuances diversificadas, até nossos tempos.
Em verdade, o mito de Édipo, anterior à peça de Sófocles, impregna desde tempos imemoriais a cultura ocidental de tal forma que nos é impossível dele desapegar. O mito entrou na composição do imaginário comum aos povos, dando sentido e valor à vida[2].
O drama nos mostra uma família universal, como ainda hoje se vê comumente, composta de pai, mãe e filhos. No caso, trata-se de um núcleo familiar estruturador do próprio reino de Tebas, e preordenado a perpetuar o Estado, que traz em sua origem o germe da destruição pela violação de alguns dos interditos máximos da cultura ocidental, tais como o parricídio (Édipo mata Laio, seu pai), o incesto (Édipo deita-se com Jocasta, sua mãe, e com ela tem filhos) e o fratricídio (Etéocles e Polinices enfrentam-se diretamente e tombam mortos).
No plano simbólico, a violação aos interditos mostra a completa desestruturação da família, que se desintegra, sendo necessário a Tebas desfazer-se do modelo que não mais lhe serve para reconstruir-se a partir de uma nova concepção de família que, multiplicada, sirva de estrutura a um novo Estado, purificado dos vícios que o levaram à crise e à beira da destruição.
1 – Criança, uma história não protagonizada
A história da criança brasileira, seja na Colônia, como no Império e na República, pode ser contada à luz do protagonismo adulto, como se a infância não fosse reconhecida, não pertencesse e não participasse, estivesse despida de consideração no mundo, ou no universo das relações travadas em terras brasileiras. Em termos jurídicos, ou antijurídicos, é possível identificar a situação da criança, na história do Brasil, como a de um não sujeito, não titular de direitos.
Certas buscas encaminham perplexidades ou estupefação tais que os fatos não têm como ser relatados diversamente da perspectiva negativa. A escassez de relatos históricos, em documentos, oficiais ou privados, nas artes ou nos traços fundantes da cultura, embora seja certa a existência do sujeito e sua interação com as realidades circunstantes, perturba a sensibilidade de quem procura estabelecer um contato com aquela realidade sabida e negligenciada. O não-sujeito, não titular de-direitos, é exatamente isto: alguém cuja existência não é meramente pressuposta ou presumida, mas que parece não ter sido reconhecido em seu tempo, posto haver omissão, quase absoluta, sobre sua passagem pela vida de relação, como se não interagisse, ou estivesse condenado à condição de desimportante.
Assim parece ser a história da criança no Brasil, nos períodos da Colônia e do Império, além de grande parte da vida da República. Não foi vista ou retratada como ator, nos fatos documentados, a não ser em observações à margem, quando temas e personagens são notados e referenciados. Tem-se a impressão de que, no romance das realidades deste país continente, o personagem criança restou sem lugar, quase sem narrativa, quase sem significância sua participação nos eventos cotidianos da sociedade colonial, imperial ou republicana, muito mais no respeitante aos momentos decisivos da Nação.
Pode-se indagar: que conjunção de fatores levaria à situação da perspectiva negativa, como alternativa de narração da construção de um personagem na história, como se estivesse oculto e fosse necessário penetrar em subterrâneos para iluminar sua existência? Atentar para a economia praticada, a estruturação social e o direito será válido. É impróprio pensar que tal abordagem propiciaria um vislumbre completo e esclarecedor; porém, ao menos algumas das razões da parca documentação sobre a condição da criança no Brasil, num período de quase cinco séculos de história, poderão surgir ao descortino.
Autores de clássicos estudos sobre a formação da sociedade brasileira, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, em suas obras mais conhecidas, sequer tangenciaram a temática da infância no Brasil, durante os períodos históricos a que dedicaram seus melhores esforços. Sem embargos, seu pensamento é de extrema valia para uma compreensão da economia, da vida do homem comum e das condições políticas então vigentes, em auxílio a uma possível compreensão do que foi o estilo de criação, educação e formação das crianças nos séculos antecedentes da república.
Diante da escassez de fontes, os registros paroquiais tornaram-se fonte essencial, para os séculos XVI e seguintes, na história demográfica do Brasil. Desde o Concílio de Trento, a Igreja de Roma tornou obrigatórios e regulamentou os registros de fatos importantes da vida dos católicos, tais como o batismo e o casamento. Reafirmando a obrigatoriedade dos registros instituídos pelo concílio de Trento, o Papa Paulo V, em 1614, instituiu, por meio do Rituale Romanum, os registros obrigatórios do óbito e da crisma, para todas as paróquias. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, que tiveram por lastro o Concílio de Trento, reafirma a obrigatoriedade, em cada paróquia, dos registros de batismo, casamento e óbito, para toda a população, incluindo escravos.
Sobre os registros paroquiais, disserta Natally Chris da Rocha Menini:
A elaboração dos registros de batismo, casamento e óbito no Brasil, ocorreu segundo as instruções tridentinas, adaptadas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707. Distribuídas por cinco volumes, as Constituições Primeiras abordavam desde questões dogmáticas até o comportamento das ordens, irmandades e dos fiéis no cotidiano de suas vidas. Para isso, além das normas, previam procedimentos e sanções. Em uma época em que a religião católica era o principal balizador da mentalidade e da moral das pessoas, que findavam por comportar-se, social e politicamente, segundo os ditames da Igreja, muito mais do que regular o clero e os fiéis, as Constituições Primeiras regravam a vida em sociedade. Nesse contexto, coube à Igreja Católica, registrar todos os fenômenos vitais no Brasil até a Primeira República.
Sabemos que com a institucionalização da República em fins do oitocentos, os projetos de secularização do Estado incluíram a secularização dos registros vitais, a secularização dos cemitérios e a obrigatoriedade do casamento civil. Com o Registro Civil, a concepção de sujeito e família essencialmente vinculada a uma cosmologia cristã, encontrou novos códigos sociais que se distanciaram da esfera religiosa.
Do registro de batismo, dentre outros dados, era obrigatório constar: se a criança era legítima, ilegítima, exposta ou escrava. Tais informações, absolutamente preciosas para a compreensão do tema da criança brasileira, permitiram diagnosticar a ocorrência, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, na cidade de São Paulo, o registro de 40% de nascimentos em relações extramatrimoniais, sendo 25% de filhos ilegítimos e 15 de expostos, computados somente entre a população livre.
Igualmente importantes, os registros das Rodas dos Expostos das Santas Casas de Misericórdia. Nesses registros eram anotados todos os dados da situação da criança, inclusive se já era batizada, e o quanto mais se reputasse útil, como estado de saúde, roupas que vestia, enxoval deixado, pequenas joias, data da morte (o que era comum, em índices que chegavam a aproximadamente 72% dos abandonados), endereço da ama de leite (havia amas internas e amas externas, remuneradas, ditas amas mercenárias), frequência à casa materna (se conhecida a origem da criança), casamento da criança exposta etc.
Os livros dos expostos, dos conselhos municipais, à falta da Roda dos Expostos, e os censos ordenados pelo Marquês de Pombal, a partir de 1765, também são fontes relevantes para o levantamento histórico da situação da criança, nas diversas regiões do Brasil, por época da colônia como do império. Boa parte das crianças expostas não tinha como destino instituições, como as Câmaras Municipais ou as Santas Casas de Misericórdia, mas circulavam de lar em lar, informalmente, especialmente nas localidades não dotadas das burocracias urbanas mais desenvolvidas, ou no meio rural.
Utilizamos, indistintamente, as expressões “criança exposta”, “criança enjeitada” e “criança abandonada”. Embora haja distinções, aceitas por determinados autores, conforme a situação material de ocorrência do fato (em locais tais como ruas, becos, ermos, portas de casas, sujeitando a criança, além dos males comuns à deficiente nutrição, a toda sorte de agressões climáticas, ou por animais que transitavam pelas cidades e vilas, tais como cães e porcos, comprometendo seriamente a expectativa de sobrevida, denominavam-se “expostos”; em locais institucionalizados, como Câmaras Municipais, Santas Casas de Misericórdia, Roda dos Expostos, denominavam-se enjeitados; a denominação de abandono somente ganhou generalização ao final do século XIX), as expressões “exposta” e “enjeitada”, há décadas, convivem e se confundem, na atualidade, com “abandono”.
2 – Crianças, apenas crianças
Podemos iniciar a narrativa, ainda que breve e superficial, da história da criança no Brasil, a partir dos registros de viagens em embarcações portuguesas, que contam de 1.530 em diante. Além do contingente de muitos homens, e bem poucas mulheres, um significativo número de crianças, alistadas como grumetes e pajens, com idade normalmente variando de nove a quatorze anos, correspondendo a aproximadamente dezoito por cento das tripulações, participou das incertezas da travessia atlântica.
A fome e a miséria, que passava o povo português, levava os pais a alistarem seus filhos, recebendo o soldo respectivo, mesmo cientes de que a taxa de mortalidade alcançava atordoantes trinta e nove por cento, durante a travessia atlântica, sem contar os inúmeros infortúnios, e os sérios riscos à vida, dos que alcançassem terras coloniais.
O índice de mortalidade em terras portuguesas, por fome e doença, era semelhante ao risco de morte no mar. Fome, miséria, doenças e morte eram destinos comuns.
Dormir ao relento, em embarcações inseguras, submeter-se a alimentos estragados, trabalhar nas tarefas mais arriscadas, que os marinheiros adultos recusavam, ver a infância esvair-se em sevícias, tão comuns em ambientes brutos, de muitos homens em vidas sem rumo, e de raras mulheres, e prostituir-se para obter algum favor que minorasse suas dores. Assim muitos morriam e poucos sobreviviam.
Chegados às terras da colônia, os jovens sobreviventes da travessia atlântica tinham destinos diversos, conforme sua origem, mas todos os percursos conduziam a lugares incertos e crivados de infelicidades.
Crianças escravas, que também aqui aportavam, ou neste solo nasciam, tinham baixo valor no mercado, sendo encaminhadas ao trabalho a partir dos sete anos de idade, e consideradas formadas, com significativo aumento de valor, como mercadoria, a partir dos doze anos de idade, para uma vida que dificilmente chegava aos cinquenta anos.
Nas vilas e povoados das Minas Gerais, caminhavam as crianças pelas ruas, sem atividades próprias, sujeitando-se aos riscos de lugares ermos e ao duro aprendizado de uma sociedade por elas não interessada. Sobre a vida nas senzalas, destas terras de história tão peculiar, distantes do litoral, disserta Julita Scarano:
Nas senzalas, viviam os escravos de um mesmo proprietário e as crianças andavam por todos os lugares, freqüentando inclusive, as habitações de seus donos, sobretudo quando suas mães ali trabalhavam. As obras de Debret e de Rugendas nos mostram muitas vezes crianças negras no mesmo ambiente que os filhos de seus proprietários, confraternizando com eles e mesmo se relacionando com suas donas. Esses e outros autores contam que estas acarinhavam e aceitavam as crianças negras que não tivessem ainda atingido os sete anos, sobretudo as menores e, a partir daí, segundo Debret, eram entregues à tirania dos outros escravos. As pequenas crianças negras eram consideradas graciosas e serviam de distração para as mulheres brancas que viviam reclusas, em uma vida monótona. Eram como que brinquedos, elas as agradavam, riam de suas cambalhotas e brincadeiras, lhes davam doces e biscoitos, deixavam que, enquanto pequenos, participassem da vida de seus filhos. Alguns dos viajantes que percorreram o país no século XIX comentavam tais questões, quase sempre com certo escândalo, alguns julgavam tratar-se de promiscuidade.
O comércio escravista não considerava as uniões dos infortunados como famílias, vendiam-se separadamente homens, mulheres e crianças. A gravidez de uma escrava normalmente não era vista como fato interessante, em termos de multiplicação da mão de obra disponível, mas como oportunidade para ter-se uma ama-de-leite disponível.
De forma ilustrativa, e elucidativa, uma tabela de nascimentos e mortes do Serro Frio (atual Serro), do ano de 1776, informa a situação crítica das pessoas de origem africana, ou afrodescendentes, registrando: a) para pessoas consideradas brancas, 475 nascimentos e 246 óbitos; b) para pessoas consideradas pardas, cabras e mestiças, 717 nascimentos e 239 mortes; c) para pessoas consideradas pretas ou crioulas, 544 nascimentos e 596 mortes. Tais dados mostram o interesse em permitir o crescimento das populações branca e parda, assim como o interesse em impedir o crescimento da população africana, ou afrodescendente, podendo-se imaginar o impacto na expectativa de sobrevivência das crianças escravizadas.
No alvorecer da República, o tratamento dispensado às crianças, sobremaneira àquelas desafortunadas, que orientação não encontravam no lar, ou por parte dos órgãos públicos, foi o de autêntico caso de polícia. A impropriedade do pensamento, então vigorante, é hoje de fácil reconhecimento.
O Código Penal de 1890, por tantos considerado o pior já editado em todos os tempos (em contexto mundial), dadas suas notórias imperfeições, e que vigorou até o advento do Código Penal de 1940, considerava imputáveis os maiores de catorze anos, mas também admitia imputabilidade ao maior de nove e menor de catorze anos, desde que se conduzisse, na senda do crime, “com discernimento”. Absolutamente inimputáveis, somente os menores de nove anos de idade!!!
A respeito da legislação criminal de época, discorrem Marcos César Alvares, Fernando Salla e Luis Antônio F. Souza:
O Código de 1890 previa a pena de prisão celular para a quase totalidade dos crimes. Juntamente com esta modalidade de encarceramento, estabelecia ainda três outras, porém de uso muito restrito: a reclusão, a prisão com trabalho obrigatório e a prisão disciplinar. De acordo com o artigo 47 do Código, a pena de reclusão deveria ser cumprida “em fortalezas, praças de guerra, ou estabelecimentos militares”. Sua aplicação era prevista para os crimes políticos, para os que atentavam contra a Constituição política da República, contra o funcionamento dos poderes, ou ainda para aqueles que promoviam uma conspiração. A pena de prisão com trabalho seria cumprida “em penitenciárias agrícolas para esse fim destinadas, ou em presídios militares”. Estava prevista para poucas circunstâncias, dentre elas a de “mendigar, fingindo enfermidade” (art. 393). E a prisão disciplinar que, segundo o artigo 49, deveria ser cumprida em “estabelecimentos industriais especiais, onde serão recolhidos os menores até a idade de 21 anos”. O alvo desta pena eram os maiores de 14 e menores de 21 anos que eram considerados vadios (art.399).
Embora já existentes instituições privadas dedicadas ao recolhimento de crianças ditas infratoras, mormente por iniciativa de entidades religiosas, em 1902 surge a Lei 844, do Estado de São Paulo, autorizando a criação de um instituto disciplinar para infratores menores de vinte e um anos de idade, sobre o que leciona Marco Antônio Cabral dos Santos:
… A Colônia Correcional destinava-se ao enclausuramento e correção, pelo trabalho, “dos vadios e vagabundos” condenados com base nos artigos 375, 399 e 400 do Código Penal, e o Instituto Disciplinar destinaria-se não só a todos os criminosos menores de 21 anos, como também aos “pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de nove e menores de 14 anos” que lá deveriam ficar até completarem 21 anos.
O ingresso dos jovens no Instituto Disciplinar dava-se sempre por sentença do juiz de Direito, que determinava o tempo de permanência dos sentenciados.
Em 1921, pela primeira vez, uma lei federal tratou da assistência à infância. A Lei 4.242/21 criou o Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e Delinquente, determinou a fundação da Escola 15 de Novembro e a instalação de um juízo de direito “privativo de menores”. O educandário teria, por determinação legal, a finalidade de facultar às crianças e adolescentes, nas condições de tutela do serviço de assistência e proteção, “modesta educação literária e completa educação profissional”.
Em 1923, no Rio de Janeiro, e 1924, em São Paulo, foram instalados os primeiros juízos privativos, cuja atuação consistia, basicamente, na internação das crianças e adolescentes havidos como “abandonados”, ou “delinquentes”. Fundamentalmente, tratava-se de legislação discriminatória e excludente, que identificava como “abandonados” os “menores” de origem pobre, tal como afirma Irma Rizzini:
A definição de abandono no regulamento da assistência (Decreto n. 16.272, de 1923) era extensa e encobria, na verdade, uma tentativa de regulamentar a educação dos filhos das famílias pobres, já que se referia basicamente a situações vividas por crianças das camadas populares, tais como: não ter habitação certa; não contar com meios de subsistência; estar empregado em ocupações proibidas ou contrárias à moral e aos bons costumes; vagar pelas ruas ou mendigar etc.
As mais diversas instituições, criadas a partir de então, destinavam-se a dar suporte ao entendimento, então vigente, de internação de “menores” em situação de abandono e delinquência. Uma sucessão de erros grosseiros, na ação governamental, destruiu vidas sem fim no Serviço de Assistência a Menores, conhecido pela sigla SAM, denunciado, por seu próprio diretor, nos anos de 1954 a 1956, Paulo Nogueira Filho, na obra Sangue, Corrupção e Vergonha. O SAM, segundo o entendimento da população destinatária dos seus serviços, era também conhecido como “Sem Amor ao Menor”.
Crianças e adolescentes, na Primeira República, na inspiração do Código de Menores de 1927, sob a ditadura Vargas, na visão das diversas instituições criadas, de índole e compromisso supostamente assistencial, e sob o Código de Menores de 1979, não eram tratados como prioridade pelo Estado, mas como problemas sociais, com resolução policial. Assim prevaleceu até a Constituição de 1988.
3 – Considerações finais
Indigente esta nação, tantos séculos negligenciando suas crianças, como se fosse feita apenas para adultos, como se adultos jamais tivessem frequentado os sonhos e fantasias da infância. Triste a infância vivida sob o estigma do abandono e da “situação irregular”, empurrada para instituições.
Felizmente, em 1988, nova realidade se descortinou, ainda que tardiamente, com a busca pela superação de velhos preconceitos e a emergência de uma melhor compreensão da existência e das necessidades do mundo das crianças (agora tratadas com a distinção entre crianças e adolescentes). Pela primeira vez em nossa história, projeta-se a infância como opção preferencial. Busca-se, na nova ordem constitucional, afastar o estigma do caso de polícia, da segurança social, e tem-se a impressão de que algo de proveitoso se pode fazer com conhecimento de causa, ultrapassando o habitual “achismo” dos agentes da segurança pública, que teimavam (e ainda há saudosistas de um tal proceder) em combater a vítima (a criança, com todo o histórico de abandono e descaso de cinco séculos) sem atentar para o imenso débito social acumulado, e sem se preocupar com o núcleo familiar que a gerou.
Uma constatação, que se coloca desde já, é a que possibilita tracejar paralelos entre os cuidados com a infância e o sistema político. A maturidade de uma Nação se mede, em parte, pelas concepções de filosofia política predominantes. Justiça e bem comum não fazem parte da realidade das pessoas, em regimes políticos opressivos; expectativas da maioria são sufocadas pelo poder das armas, não subsistindo o melhor dos argumentos à simples teimosia, ou inconveniência, do mandante de momento.
Para se atingir graus de justiça e bem comum, é necessário que haja uma cultura de fundo que se estabeleça, motivando os cidadãos a dela se apropriar para, compreendendo-a, formarem uma consciência que direcione e exija, de instituições e agentes políticos, a materialização dos ideais de liberdade e democracia. Isto vai para muito além do ato de votar periodicamente, do pensamento voltado para interesses pessoais, de caráter econômico ou de classe. Uma autêntica cultura de liberdades cidadãs, e de política democrática, aprecia e preserva a diversidade, dela extraindo, na medida da realização da justiça e do bem comum, a necessária unidade.
O Brasil, em séculos de Colônia, Império e República, cultivou desigualdades e exclusões, discriminações e privilégios. Mas nas últimas três décadas começou a entender que a enorme diversidade cultural dos seus povos pode ser a chave de uma sociedade mais justa e politicamente integrada. Nessa perspectiva podem ser analisadas novas tendências que em nosso solo aportam, nas mais diversas áreas, especialmente em filosofia política, direito e políticas públicas. Um discurso inovador, voltado à superação das exclusões, descortinando possibilidades de realização dos potenciais humanos, a favor de todos, inclusive de nossas crianças e adolescentes, começa a se impor, como nutriente do espírito da Nação.
A infância, e a adolescência, com tantas nuances específicas, são diretamente beneficiadas pelo momento. Sem um olhar afastado dos preconceitos habituais, decorrentes de séculos de incompreensão e desassistência, não haverá capacidade de enxergar, nos mais novos, alguém digno de atenção. Sob regimes herméticos, todos são igualados no desrespeito e as peculiaridades de cada qual, conforme o estágio de desenvolvimento das aptidões físicas e espirituais, próprias de cada idade, um não são percebidas. Essa sensibilidade só se adquire com robustez de cidadania, liberdades cívicas e prática democrática, que configura algo tão recente em nossa história, que temos o dever de preservar para a nossa e as futuras gerações. Somente o ambiente político democrático propicia preocupações e desenvolvimento de ações em reconhecimento, materialização e salvaguarda de direitos àqueles que não têm como verbalizar e exigir o atendimento de suas necessidades.