Um dia na vida

A vida não tinha mistérios, sequer era ela também um mistério, nela nada havia de místico, tudo se repetia monocordicamente: acordar, beijar a mulher, beijar os filhos, tomar café, arrumar-se, dirigir-se à estação do metrô no bairro Carlos Prates, parada na Praça da Estação, caminhada leve, subir a Avenida Amazonas até a Avenida Afonso Pena, chegar à Praça Sete, entrar no prédio, cumprimentar o porteiro, subir ao décimo segundo andar no elevador antigo e desgastado, ganhar o corredor, virar à direita, abrir a sala 1.207, ligar o computador, ler as notícias do dia, observar o informativo com as publicações do dia, preparar arrazoados, memoriais, contestações, petições iniciais, recursos, contraminutas, pensar nas audiências, sair da sala, trancar tudo, ganhar o corredor, virar à direita, tomar o elevador, descer à portaria, cumprimentar novamente o porteiro, como se não o houvesse feito antes, ganhar a Praça Sete, dividir o táxi com o Gualberto até o fórum, no Barro Preto, transpor os portões, subir as escadas, passar pelo detector de metais, subir as escadas até o segundo andar e iniciar o périplo pelas secretarias das varas criminais, pegar senhas, enfrentar filas e o mau humor de escrivães e de escreventes, entrevistar-se com um ou outro juiz e um ou outro promotor de justiça, mostrar todo seu enfado a outros advogados e defensores públicos igualmente enfadados, fazer audiências, ouvir testemunhas, suportar provocações, protestar contra inobservância e desprestígio de prerrogativas profissionais pisoteadas sem cerimônia pelos mesmos escrivães, escreventes, juízes e promotores de justiça, prometer o impossível a réus e respectivos familiares, receber alvarás para levantamento de valores, receber honorários pela cansada advocacia, retornar apressadamente, de táxi, à Praça Sete, olhar, sem admiração, mais uma vez o prédio do antigo Cine Brasil, ir ao Café Nice, degustar o instante, atravessar a Avenida Afonso Pena e ganhar a portaria do prédio do escritório, repetir maquinalmente todos os cumprimentos, tomar o elevador, abrir a sala, ter um momento de estafa, jurar que algum dia contratará uma secretária, pensar no orçamento, nas contas a pagar, desfazer a ideia, continuar os arrazoados, petições iniciais, contestações, recorrer dos absurdos do dia, contraminutar, redigir memoriais, refazer mentalmente o dia, reparar que já são mais de 20h, desligar o computador, fechar livros e recoloca-los na estante, vestir o paletó surrado, retirar a gravata e colocar no bolso, abrir a porta, trancar o escritório, tomar o elevador, descer à portaria, onde já não está o porteiro, descer a pé a Avenida Amazonas até ganhar a Praça da Estação, tomar o metrô, descer na Estação Carlos Prates, cruzar a Avenida Nossa Senhora de Fátima, ganhar a Rua Tremedal, entrar em casa, beijar a mulher, ver os filhos dormindo, cometer sexo rápido e deselegante e sonolento, tomar um banho, vestir pijama, deitar e dormir, novamente acordar e repetir a rotina de vida de casado, estabelecida há nove anos, pagar as contas e julgar-se feliz por tudo quanto conquistado sem pensar, sem dar-se conta, sem modificar um milímetro ou um segundo, aguardar o final de semana, as férias, os feriados, o Natal, o carnaval, a Semana Santa, 21 de abril, 1º de maio, dia das mães, dia dos namorados, dia dos pais, 7 de setembro, dia das crianças, 15 de novembro, ano novo, promessas para não cumprir e tudo para repetir por mais uma década. Era, enfim, feliz, seguro, confiante, realizado e nulo! Uma felicidade ignota, uma segurança à beira do precipício, uma confiança de quem não enxerga o perigo e confunde destemor com a própria ignorância, uma realização de quem não se afoga, apesar de não sair do lugar, uma nulidade de quem desconhece que algo mais possa haver, além da própria idiotia no olhar.

Se o treino se faz da repetição e a repetição conduz à perfeição, sua vida era perfeita! Perfeitamente igual todos os dias, metodicamente repetida, até acreditar no seu título em ciências jurídicas, até acreditar que “Doutor”, “Excelência” e outros tratamentos cotidianos no universo dos profissionais do direito são merecidos e devidos, até acreditar que juízes, advogados e promotores de justiça “de piso” devem acatar com naturalidade que a “instância superior” lhes é mesmo superior, até acreditar que revoltar-se é desperdício de tempo e de energia e que todo brado de agonia é inútil, até acreditar que tudo na sua vida é reprodução e que seus filhos, bem sucedidos, reproduzirão o que ele fez a si mesmo, com orgulho e satisfação, dentes cariados e remédios para diabetes, distúrbio do sono, ansiedade e hipertensão. Quão espetacular é sentir-se integrado ao sistema e poder vangloriar-se da própria educação! Um ufanismo patriótico de cantar o hino nacional toda semana na escola, como ocorrera em sua infância prenhe de saudades, um ufanismo de certeza e exatidão no porvir, um ufanismo positivista na ordem e na inevitabilidade do progresso, um ufanismo de amor ao governante e ao sistema de governo que tudo promete prover, um ufanismo de sentir que o país é sua família, que a propriedade é seu reino, onde suas leis, as leis de sua vontade, de sua linguagem e de sua comunicação são entendidas, observadas, cumpridas e serão repetidas, iguaizinhas, pela eternidade atemporal de sua existência finita! Quanta dignidade na igualdade curvada, ajoelhada, respeitosa, obediente, cordata, em mesuras e sorrisos de hotelaria, unificada sob lápide no Bonfim! Sonhar com a realidade próspera que a todos encaminha ao mesmo fim. Que haveria de melhor na inconsciência de ser o que se é, viver o que se concede, acreditar na promessa de que um futuro e incerto governo realizará para a próxima geração algo em que a próxima geração também acreditará? A vida é perfeita em sua repetição, em sua meticulosa repressão do contrário ao destino histórico da Nação!

A vida alheia não era de sua conta, não importava, não lhe dizia respeito, não influenciava, afinal, todas as vidas eram vividas em igualdade para as pessoas de bem e toda diferença era fundada no pecado, no vício, no desprezível crime de voltar-se contra a realidade, mesmo que o desprezível não se enxergasse, mesmo que o desprezível se alojasse em algum recôndito místico e inescrutável, mesmo que razão aparente alguma houvesse. Afinal, não nos cabe questionar os desígnios de Deus como as ordens do Estado que tudo provê, do governante infalivelmente preocupado com o bem-estar dos filhos pobres da Nação, pois nunca houve Deus melhor do que o seu, governante melhor do que o atualmente posto, pessoa de alma mais honesta e preocupada do que o governante que retorna aos braços crédulos do povo, família mais digna do que a que se homenageia com nomes em prédios, logradouros e instituições públicas, nunca houve intenção mais pia do que a que anima o instituto que o ex-governante criou com seu nome, adornado com a própria efígie na entrada, para maravilhar o mundo. Infinita é a alegria dessa vida completa, irreparável, digna de ser vivida e reproduzida, feita à imagem e perfeição de generosos contratos para os profissionais liberais e de promoções quinquenais para os servidores públicos, diferenciação pelo tempo de serviço prestado, de presumido aperfeiçoamento na repetição que faz todos se sentirem partícipes da produção do bem, da moral e proteção dos bons costumes. Nada melhor sonharia.

Escrupulosamente, recusava entreter-se com palavra alheia, mesmo em ambientes públicos, em ônibus e no metrô, em salas de espera de médicos e dentistas, no saguão do fórum. O apego à reserva e preservação da intimidade era definidor de um modo de ser alheio aos circunstantes e às suas falas, às circunstâncias e às suas implicações, a não ser na medida em que interessassem a um processo ou a alguma tese a ser desenvolvida em prol da defesa de interesses de algum cliente. Consigo mesmo não precisava preocupar-se, seguro que estava de si e de que, kantianamente, todos haveriam de pautar-se pela regra ditada pela generalidade das mães, a chamada regra de ouro: não faça a ninguém o que não deseja que lhe façam, ou, faça apenas aquilo que possa ser feito por todas as pessoas sem que ninguém com isso seja prejudicado. Uma espécie de convicção infantil, sedimentada na escola primária e reforçada até o final da década de 1970 e início da década de 1980, conduzia-o em tudo na vida e assegurava a impenetrabilidade de sua condição satisfeita e realizadora, na profissão como no casamento, na diversão como na contrição religiosa; seus pecados jamais incluíam soberba, orgulho, inveja, curiosidades mórbidas e quejandos, eram apenas pecados veniais, mais facilmente perdoados. Assim pensava. Assim se convencia de ser. Não havia motivos para conjecturar e crer diversamente, pois a autoconfiança era dominante e invencível. Como era bom viver de certezas e convicções inabaláveis, poder estufar o peito e afirmar-se integrante do sucesso, apesar de alguma decadência que atribuía à ruptura dos bons costumes e da família nuclear por uma democracia que mais não prometia do que abalar o que era tão certo em sua infância, adolescência e princípio da vida adulta. Desmandos econômicos, liberdades políticas e de imprensa que mais pareciam com aquilo que o professor Dante chamava de libertinagem nas aulas de língua portuguesa, quando apreciava o romance A Carne, de Júlio Ribeiro, que afirmava ser impossível de ler por pessoas de bem. Sobreviveu à autoproclamada Nova República e teve seu momento de catarse nos respingos da Era Trump.

Sessenta anos vividos na relatividade de sua formação, ideias de aposentadoria chegando, vontade de saborear benefícios sociais da inatividade sonhada, pois não há frêmito liberal que resista a alguma prática social de acolhimento ao ócio despretensioso, com renda assecuratória de provisões para os dias de decaimento das energias. Afinal, Ascenso Ferreira tinha razões de boa filosofia para bradar: “Hora de comer, comer! Hora de dormir, dormir! Hora de vadiar, vadiar! Hora de trabalhar? – Pernas pro ar que ninguém é de ferro!” Ninguém é de ferro, ninguém é máquina, os melhores são insubstituíveis e o repouso é um merecimento e uma dignidade que constavam de sua cristã proficiência em caridade. Sessenta anos, pensava, é tempo de não mais, é tempo de cessar o trabalho e descansar, descontrair, sair das tensões obrigatórias, reduzir despesas, salvo com médicos e com medicamentos, deixar aos mais novos o compromisso de fazer força, gozar da vida o que não se gozou no desde sempre de suas funções essenciais no mundo, descuidar um pouco, mas não muito, da sobriedade, comprar um sítio e ser um homem rural, ser o que nunca foi. Nova infância e direito à perda de freios aos impulsos em estado vegetativo, controlados pela civilidade bem aprendida e executada com primorosa atenção; talvez alguma forma de demência (não pensou, mas pensaram a seu respeito). Hora de repassar o escritório e suas reponsabilidades ao filho mais velho, igualmente advogado e seu orgulho de criação, tão à sua imagem e procedimento se revelou o menino.

Estava naquela que planejava ser a última semana de sua faina como trabalhador das leis, servidor do direito e da justiça, como se fosse possível realizar as duas coisas simultaneamente, como se fosse possível servir ao positivismo da lei e ao ideal de justiça da concepção greco-romana da antiguidade clássica. Distraía-se no metrô, na primeira aventura de sair uma hora mais tarde para o trabalho, quando ouviu uma voz que não poderia ignorar. Era sua filha caçula que, sentada de costas, por haver entrado na Estação Gameleira do metrô, próximo à PUC, repassava com a professora, orientadora do mestrado em ciências sociais, os termos de um artigo sobre a sexualidade dos casais nascidos nos anos 1960. A preservação da intimidade era proibitiva de ouvir alguém conversando em local público, mas não se tratava de pessoa de quem pudesse manter olímpica indiferença; pensou em intervir, mas reparou que Camile lia à professora um depoimento sobre a insuportabilidade do sexo com marido previsível, a preguiça sexual despertada pela rotina de insegurança do marido, o recurso ao encharcamento emocional das novelas, os sonhos de realidades alternativas, a masturbação como remédio para a solidão, o holocausto sexual para manter um casamento, a indiferença na maturidade da vida, a vontade de abandonar o marido previsível, a manutenção do casamento por dó e pesar de um homem inapto e a apreensão de que a aposentadoria o tornasse presença constante e abominosa, após tantos anos de serviços sexuais sem prazer e ricamente adornado de frustrações. Não poderia interromper a rotina acadêmica da filha. Não poderia resistir ao injusto depoimento. Não poderia senão chorar ao descobrir que o depoimento era de sua Simone.

Ponderou todos os dias da anunciada última semana. Comprou um colchão de molas para a cama de casal. Já era tempo, após a superação de três décadas de casamento. Assim, tudo seria mais leve.

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