I – Indagações
Quem teria a ousadia de dizer e praticar a doação da própria vida por uma causa? Bem poucas pessoas o fizeram na história. Riscos são assumidos e calculados, no entanto, normalmente cedem no sopesamento de vontades, interesses, viabilidades, de acenos reservados à incerteza do futuro. A política tem limites que a finitude implicada na condição humana é capaz de compreender e declarar que um nível muito elevado de sacrifícios é inexigível. Quando se sabe e se pratica a ideia de que o mundo não é um lugar ou uma coisa, não é tempo ou espaço, mas o que nos submete do nascimento à morte, algumas perspectivas podem e devem se alterar; então é natural entender que a realidade entorna o cálice dos fatos ou das obras e que a concentricidade dos cálices revela sua eterna renovação, indicando que a verdade perde sua origem na história para ganhar atemporalidade.
O que foi impactante no momento da prisão, no sótão da casa de Domingos Fernandez da Cruz, no Rio de Janeiro, em 10 de maio de 1789? Havia nele plena consciência de que suas atividades poderiam leva-lo a um desenlace assustador, que naquele momento não era possível antecipar em padecimentos físicos, emocionais, mentais. Mas já teria feito a entrega de seu espírito ao destino que outorgaria cem anos de desprezo por traição à monarquia e a eternidade como mártir e herói da república? O que passou, o que disse e como agiu perante as circunstâncias mais desfavoráveis (mesmo desesperadoras) testemunham seu pensamento, sua força mental, sua convicção inarredavelmente republicana.
II – Frases definidoras
“Pois seja feita a vontade de Deus. Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria”. Há mais em uma frase do que a leitura superficial possa indicar, o que aproxima a determinação nela contida do que outros, em diversas épocas e lugares, pensaram e viveram. O extermínio não intimida certos personagens históricos, ainda que se diga que parte do que se conta seja exagero propagandista ou intenção de construir uma imagem justificadora do que era impensado a seu tempo. A edificação de ficções despregadas absolutamente de fundos de verdade suficientemente fortes tem vida curta e estudos documentais, mesmo que relativamente desprovidos de profundidade, desmascaram essas fantasias; criar algo absolutamente falso não é tarefa simples e provoca, invariavelmente, o desabamento moral de seus autores. Para heróis escritores, a fogueira foi destino comum de suas obras em seu tempo ou no da repressão às suas ideias; para os heróis realizadores, torturas, encarceramentos inimagináveis, aos quais seria preferível a morte, o despedaçamento, a fogueira purificadora, a forca, o fuzilamento e artes outras da destruição de corpos, que como tais efetivamente foram empregadas, como se a eliminação física fosse capaz de obliterar ideais inscritos na consciência dos povos.
A mesma frase, pronunciada em momentos e espaços diversos, surte efeitos igualmente diversos, conforme seja o ânimo de quem a ouve e interpreta. A diferença entre o ato de heroísmo e o ato do criminoso pode estar apenas na intenção do praticante ou na posição social e política de quem o testemunha. Plutarco (Vidas Comparadas dos Maiores Guerreiros da Antiguidade: Alexandre e César, p. 84) atribui a Calístenes haver citado um verso cuja autoria se perde: Na sedição, altas honras pode alcançar um celerado. Certamente que no ambiente carcerário, aguardando a execução de sua pena, não pensou o futuro mártir nas conquistas macedônias empreendidas por Filipe e, muito menos, na obra de Plutarco, no entanto, ainda que por pensamentos menos claros, essa ideia ocorreu a tantos quantos se viram ameaçados pelo ideal republicano e pelo crime de lesa majestade que a simples cogitação de uma inconfidência implicava. Nem sempre traduzida com tamanha precisão e síntese em um verso, a impressão geral nos adversários despertada não seria diversa e somente o decurso dos anos, com a queda da monarquia, poderia reabilitar memórias amaldiçoadas, infamadas e condenadas pelos supostos ofendidos transformados em algozes.
III – Percurso e altivez humilde
Importa registrar, nesse contexto, não a mera repetição de fatos sucedidos e comprovados, relatados nos livros de história, algo de si relevante, entretanto, quando tanto já se escreveu a respeito e quando a história das ideias políticas se afirma, o que se pode extrair, a partir de fatos e ideias, das palavras ditas no momento crucial e definidor de uma vida que nos orienta a conhecer a intimidade do pensamento de um herói verdadeiro? Alguns escreveram seus motivos, outros agiram, mas pouco ou nada legaram de seus pensamentos e é necessário nos socorrer dos vestígios inconcussos de sua passagem pela existência para compreendê-los. O contexto faz o personagem histórico, mas é seu modo de pensar as premissas surgentes no horizonte social que determina o rumo de seus atos. Nos últimos momentos, da preparação do corpo e do espírito para o desenlace, da humilhação de percorrer ruas a pé, notado por centenas de pessoas inconscientes de seus destinos, de subir os degraus em direção ao cadafalso e, alcançado o patamar, beijar os pés do carrasco humildemente, no instante imediato ao de se lhe colocar o baraço, o instante de sentir o laço apertando e os minutos de agonia, o que se passou pela mente daquele que se ofereceu para salvar os parceiros e servir de exemplo à posteridade? A consciência da morte não é consciência do inexorável, porém do momento passageiro que abre as portas da eternidade. Por isso a invocação da vontade de Deus, para que se fizesse do corpo o símbolo de corrupção da carne, permitindo ao espírito retornar ao seio de sua proveniência, perder individualidade e ganhar o absoluto na reintegração ao Criador.
Foi um trajeto cumprido em duas horas para pouco mais de um quilômetro, o que poderia ser feito em vinte minutos, em marcha desacelerada, não fossem as trinta paradas a que alude Lucas Figueiredo (O Tiradentes, p. 362). O ritmo acelerado da marcha do herói foi diminuído a instâncias dos que o seguiam para o ofício fúnebre. Era uma data comum no calendário, mas absolutamente diferenciada pelo que se preparava para acontecer e ecoar por séculos adiante. Com um crucifixo entre as mãos, amarradas por corda à frente do corpo, concentrava sua fé e resolução. Ser infamado por julgamento tão curvo e turvo era nódoa que sabia estar fadada a desaparecer pelo reconhecimento do ideal que ostentava e pelo qual a morte não seria desproporcional, à luz do cristianismo católico de sua confissão e, mesmo dos ensinamentos dos maiores entre os doutores da Igreja (Oiliam José: Tiradentes, p. 183).
IV – A cada um o seu tempo
Os feitos humanos devem ter em consideração os pensamentos e as práticas de seu tempo, não os do momento de quem dirige seu olhar ao passado para entender o presente. Valores e princípios permanecem, mas sua formulação pode mudar e sua compreensão deve abarcar o conjunto de experiências da cultura, com o que exige-se constante atualização do intérprete e do prático. Contudo não se deve cobrar o passado pela atualidade, como o futuro não o deve fazer com o presente; seremos todos imperdoáveis aos olhos pósteros se assim não for. Nossos antepassados lusitanos, quando ao final do século XV e no século XVI empreenderam viagens de descobrimento pelo oceano Atlântico, poderiam ser havidos como celerados, na melhor das hipóteses, incluindo nessa qualificação soberanos, religiosos e o próprio Papa, se analisados e medidos pela régua da compreensão ética do século XXI. É assim que se deve pensar e medir os personagens da história, no âmbito das circunstâncias com que houveram de lidar.
Houve o tempo do surgimento da filosofia e do florescimento do teatro grego, assimilados pela cultura romana; houve o tempo das religiões reveladas e dos livros sagrados, cultuados em ritos e discursos, orientando fiéis pelo mundo; houve o tempo das invasões bárbaras, da derrocada do Império Romano e da lenta reelaboração das artes, da filosofia, da teologia e da política; houve o tempo do Renascimento e do Iluminismo, da literatura revolucionária de Rousseau e de suas consequências. Foram mais de dois milênios na Europa e menos de um século para Minas Gerais viver tudo isso impropriamente, sem intervalos para tomar fôlego, as ideias superando em muito a velocidade dos fatos, tornando pessoas antiquadas durante o transcurso de suas vidas; nessas circunstâncias, defender ideias não compreendidas por espíritos ainda inconscientemente submissos, tornou-o mártir do que levaria três décadas para iniciar e cem anos para se completar e poder reunir condições de se desenvolver: independência, liberdade e república. Pode-se dizer que estava fora de seu tempo e dentro da história.
V – Dormir no preparo da eternidade
Teria dormido sob o signo da tristeza desolada naquela véspera de execução, oprimido pela dúvida da realização a que se propusera e pela promessa de vagar sem sacramentos ou salvação no dia imediato, como soía ocorrer com os condenados à “morte natural para sempre”, que constava de sua sentença? A melancolia se abriga no que nos obriga a curvar-nos para a ela ter acesso, como prisão de teto baixo, bosque fechado em noite viúva de luar, poço profundo cujas águas não saciam a sede de alcançar o que se possa chamar de realização de alegria, é um cativeiro. Talvez assim se sentisse o mártir, após três anos de encarceramento, encomendando a si mesmo por não haver quem o pudesse, segundo os ditames canônicos. Antígona deu ritos fúnebres a Polinice, seu irmão, uma vez que Creonte o negou, para que seu corpo ficasse exposto à deterioração e a ser comido pelas feras (Sófocles, Antígona); não houve quem o mesmo fizesse por Joaquim José da Silva Xavier, que foi morto na forca, teve esquartejado seu corpo e salgado para ser dependurado em lugares determinados, até a completa putrefação e dilaceração pelos carniceiros da natureza.
O mártir não era escritor, não poematizava, como Tomaz Antônio Gonzaga, o seu sofrimento, as desilusões de uma vida interrompida e as promessas de um destino distante de seus sonhos. Como sonhador, entendia bem o que ocorria e a própria ignorância dos soldados que o guardaram até então e ainda exerciam seu mister cego, indistinto, desapegados de fé em algo melhor ou sequer cientes de que haveria possiblidades histórica e moralmente elevadas e maiores, se os ideais inconfidentes fossem a alavanca transformadora da realidade crua e destemperada daquele momento. Por não ser escritor, e por haver segredo de confissão em desfavor do religioso que o ouviu na última noite, diz-se que jamais se saberá o que ocorreu ao seu espírito àquela ocasião (Oiliam José, Tiradentes, p. 180), porém, isso pode não ser exato, uma vez encarnado o propósito não meramente sedicioso, mas constitutivo de uma nação independente e republicana, onde a busca pela justiça correria com a busca pela felicidade, do que havia exemplo atual em nosso continente e na história das civilizações.
VI – Coerências
Se Plutarco estava correto em citar os versos de autoria incerta, isto se deve à universalidade de seu conteúdo e à plasticidade com que redigidos, que os tornava apropriados aos mais diversos e adversos fatos sociais. O desafio de rompimento da ordem estabelecida, inspirado pelos mesmos ideais de alhures, pode resultar em realidades muito distintas: em Minas Gerais, maio de 1789, eram sediciosos, criminosos inculpados de inconfidência e lesa-majestade, condenação generalizada, maldições e infâmias irrogadas; em França, dois meses após, na distância atlântica, revolucionários da liberdade, da igualdade e da fraternidade, marco da ocidentalidade, monarquia destronada e, em poucos anos, morta como instituição e corpos. A mesma frase foi verdadeira nos dois continentes, e os crimes de morte ocorreram na Vendeia e outras regiões (Lyon, Toulon, Bordeaux, Marselha), às centenas de milhares; em solo de nossa terra-mãe, crime de morte houve apenas um, no Rio de Janeiro, para exterminar único homem e eternizar seus ideais. Os considerados celerados oportunistas da sedição em Minas Gerais foram pouco mais de vinte e lutavam por independência, liberdade e república; em França, foram centenas de milhares, assim considerados por apoiar o ancien regime.
Há diferença entre o indivíduo que pensa e age pela coletividade, para que seja independente, livre, e a coletividade que pensa e age como submissa a um indivíduo, para continuar a ser submissa, como se isso fosse um direito oponível à liberdade. É certo que isso autorizou (autorizou?) o morticínio jacobinista ocorrido no período do Terror revolucionário; discordar é direito e integra as liberdades humanas onde não haja totalitarismo de qualquer ordem. Doar a própria vida a uma causa não equivale a assumir riscos de eliminação física, isso não é exigível, no entanto é o que fazem heróis e mártires de que a história das civilizações, da filosofia, das ciências e das religiões registram abundantemente e é despiciendo relatar. Nos rumores e gritos da Inconfidência Mineira, uma vida simbolizou, tragicamente, uma nação e seu porvir.
VII – O mártir, o herói, a saudade e o poeta
Nos dias ou anos que sucederam a execução da pena imposta, um transporte para além do Atlântico, na busca de mitologia fundante da Germânia, Hölderlin, o grande poeta lírico, despertava para seus melhores poemas. O aparente desconcerto de duas realidades, que ao vulgo pareceria comunicar que os dois continentes não se encontrariam, foi superado, pois a essência das coisas é difusa no mundo e o fato de um é a narrativa de outro, ainda que insciente de tudo quanto tenha ocorrido noutras paragens. E é assim que do grande poeta se extraem profundas realidades do “facinoroso” que afrontou a coroa portuguesa para se tornar mártir e herói de uma nação. As linhas de nossas vidas apontam para o infinito e se encontram inesperadamente, como se esse encontro estivesse não-escrito, fadado a acontecer de inopino.
Verdades fundantes raramente são reconhecidas no tempo de seu acontecimento ou revelação. Por serem duradouras, muito além dos limites da humanidade, aguardam pacientemente o momento mais dilatado para serem conhecidas, reconhecidas e reverenciadas. Quantas vezes é preciso ir ao estrangeiro para compreender a terra natal e conhecer a si mesmo? O estrangeiro não é a cidade ou a zona rural do município de seu nascimento, hoje Ritápolis-MG, o estrangeiro é o outro, aquele que tange a realidade para onde não deveria e propicia, em uma noite, a recordação de uma vida cujos marcos são as tragédias de seu cotidiano, desde antes dos encontros inconfidentes, as tragédias que decorreram dos desmandos não apenas do Fanfarrão Minésio, mas de toda ancestralidade governativa.
No instante derradeiro, com a sufocação auxiliada pela caridade do carrasco em abreviar seu sofrimento, haveria o incomunicável sentimento de que o que nos tira a vida, a esperança, a força física, a determinação de continuar a existir, o que nos abate, nos dá, coletivamente, memória do que nos foi subtraído; em transe de morte, não houve oportunidade para refletir que cada vez menos memória é reposta no lugar do que nos é subtraído. Por que o mártir, o herói agônico, é a própria memória que se cria para sedimentar a ideia de nação em uma história fundante. O herói, o mártir, aquele que parte e entrega de si somente saudade aos espíritos que permanecem, será o mote dos versos constituintes da pátria. O herói, o mártir, reclama, para que sua existência tenha sentido e proveitos pósteros, que o poeta e o bardo versejem e cantem sua saga.
Completaria anos, oficialmente, a 12 de novembro de cada ano, avança e aproxima-se de 300 anos, idade impossível para um homem, tão pouco para a eternidade que o acolheu.