Palestra proferida no dia 21 de maio de 2021, às 14h, no evento Criminalistas para a Democracia, realizado pela OAB/MG, através da Escola Superior de Advocacia, e Instituto dos Advogados de Minas Gerais
I – Introdução
A temática do sistema carcerário e Covid 19 transcende a disciplina puramente jurídica e exige, como pressupostas, decisões sobre temas fundamentais da civilização e suas propostas. A começar por uma definição filosófica do humano, seguindo-se os propósitos da vida em sociedade e justificação do Estado e do Direito, a evolução da sociedade para o reconhecimento de direitos humanos, a necessidade de disciplina da execução da pena e o alinhavamento da excepcionalidade de uma pandemia com a corrente de conhecimentos precedente. Assim teremos condições de um debate sadio e livre, o quanto possível, de preconceitos, radicalizações políticas e ideológicas e tudo mais que prejudica o esclarecimento para bom entendimento do que postulam o MP, a Advocacia e a Defensoria Pública, assim como do que decidem os tribunais.
Embora não seja objetivo específico desta abordagem o estudo de dispositivos de direito legislado, não devemos deles nos esquecer, desde o direito internacional até o direito interno. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 5º, disciplina:
“Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”
A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, em seu art. 5º, disciplina:
1.Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2.Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 3.A pena não pode passar da pessoa do delinquente. 4.Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. 5.Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6.As penas privativas de liberdade devem ter por objetivo essencial a reforma e readaptação social dos condenados.
A Constituição Federal de 1988 disciplina, nos arts., 1º, III, art, 3º, I e IV, 4º, II e 5º, III, XLVI, “e” e XLIX, 196 disciplina:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas relações internacionais pelos seguintes princípios: II – prevalência dos direitos humanos. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III – ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante; XLVII – não haverá penas: e) cruéis. XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Art. 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O Código Penal, em seu art. 38, disciplina: Art. 38 – O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. A Lei de Execução Penal, no seus arts. 14 e 41, VII, disciplina: Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacológico e odontológico. Art. 41. Constituem direitos do preso: VII – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.
Sem nenhuma pretensão de exaurimento, devemos ainda nos lembrar do Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário, instituído pela Portaria Interministerial nº 1777, de 09 de setembro de 2003, e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional, de 2014.
II – Breve entendimento do humano
São múltiplas as conceituações do homem, representando a humanidade na língua culta, sendo a mais famosa de todas atribuída a Aristóteles: o homem é um animal político. Quis o grande filósofo grego dizer que a humanidade precisa de si, de outrem e da contribuição de muitos para sobreviver. Não é o homem aparelhado naturalmente para viver solitário, porém para viver em comunidade, seja na cidade como no campo; comunidade é sua condição natural de vida. Daí porque a troca, a compra e venda, o empréstimo de bens, a prestação de serviços e a idealização de terceiro desinteressado para formular regras de convivência, aplica-las e resolver eventuais conflitos: o Estado.
Podemos dizer que o gênero humano sabe que sabe, gera e transmite conhecimento, vive em comunidade e se comunica necessariamente para viabilizar a coletividade de que necessita para não sucumbir aos riscos de que é pródiga a natureza. Embora isso tudo pareça simples e incorporado ao nosso modo de ser, há muito mais do que uma visão de superfície sugere, como nas palavras de Riobaldo, personagem do Grande Sertão: Veredas, logo nas primeiras páginas do romance de Guimarães Rosa, que diz:
…quem mói no asp’ro não fantasêia. “…se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar zangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é?
É humana a revolta e complexa e transformadora, exigindo cuidados onde se descrê necessário. O peso do trato das coisas políticas, como tudo que implica comunidade e existência, vida em abundância e coerência, exige que da superfície o intérprete se abstenha, cuidando das correntezas não aparentes que formam servidões indispensáveis à ideia de dignidade. A hermenêutica de vida é guia para a jurídica; a dissociação da segunda em relação à primeira cria fantasias das quais nem a melhor sorte se livra.
III – Propósitos da vida em sociedade
Do muito que se possa discorrer, em variadas vertentes de pensamento, sobre os propósitos da vida em sociedade, interessa-nos a justificação contratualista, bem a propósito de contraste com os conhecimentos elementares de uma paleoantropologia que nos mostra o extenso caminho distintivo do gênero Homo em comparação com os demais integrantes da ordem dos primatas. Se é comum aos primatas em geral a vida comunitária, com estabelecimento de regras elementares para formação e dissolução de pequenos grupos, somente o gênero Homo forma grandes grupos e estabelece regras de variada complexidade, conforme as dimensões da comunidade, seu desenvolvimento ético, necessidades espirituais, materiais e progresso econômico; somente o gênero Homo sabe que sabe e demonstra seu saber, transmitindo-o de geração em geração e aperfeiçoando-o; somente o gênero Homo comunica por palavras, formando frases com ideias abstratas e adotando a escrita como meio de preservar e avançar em conhecimentos; somente o gênero Homo desenvolveu literatura para expressar realidades, saudades e anseios, regras e porvir.
Tudo é dito e ouvido, contado e escrito, e quem concorda com os fundamentos não pode discordar das consequências. A vida e sua preservação, ampliação de qualidade e de acesso a comodidades, tudo isso forma um conjunto comunicado, transmitido entre gerações e aperfeiçoado. Negar esses valores e princípios significa regredir a superados estágios evolutivos e recusar a máxima de que o humano é ser perfectível. Para se aperfeiçoar, o ser humano necessita condições, entre as quais reduções de desigualdades sociais; desigualdades expandidas são diferenças cada vez mais notadas e seu resultado outro não será que a revolta, o desfazimento da sociedade ou sua involução.
Já se foram os tempos de masmorras em prisões, condenações por ordálios e juízos sobrenaturais, do livre convencimento imotivado, da vingança como regra e da justiça como exceção. É chegado o tempo da divisão da fruição do que de bom houver e superação de precariedades que afetam o mundo circunstante, o que, para ser coerente, demanda sacrifício de posições outrora consagradas e superação de desgostos e convicções comprovadamente ultrapassadas. A manutenção de um estado de coisas somente é imaginável na medida em que favoreça a vida e a melhoria de sua qualidade, abjurando o que seja desigualdade e degradação.
O principal propósito da vida em sociedade é preservar o que há de bom para que todos possam melhorar.
IV – Justificação do Estado e do Direito
A língua é semelhante a um órgão vivo, transforma-se com o tempo tanto quanto se alteram significados de suas palavras e expressões. Comunicar as ideias de Estado e Direito, conjugá-las e extrair consequências, demanda esforços de atualização com o desenvolvimento filosófico e político, abandonar pretensões de simples vingança e da retribuição de violações sem propósito de recuperação e elevação. O contratualismo de modelo hobbesiano ainda é muito citado, porém, revela- se insuficiente e deformador para o presente, merecendo atualização. Ideias e práticas de segurança alimentar, educação, socialização dos proveitos e reconhecimento de méritos, patrimônio que se eleva muito além da projeção econômica da personalidade para atingir o imaterial e a coletividade, o bem comum e gerações de direitos humanos, tudo isso e muito mais foi incorporado por nossas pretensões pessoais, o que não podemos negar em abstrato ao nosso semelhante.
Há um fundamento ético na vida em coletividade que não pode ser desconhecido e nem relegado, que deve ser mais do que simples pensamento e atingir níveis ascendentes de realização na vida de todos. A isso pode-se dar o nome de dignidade e cidadania. Ser cidadão é mais do que pagar impostos e votar ou ser votado nos pleitos eleitorais, reúne uma pluralidade de condições que apoiam os mais fracos e recuperam transgressores em cálculo não elementarmente utilitarista, mas de retorno ao bem comum. Se aceito isto para o Estado e o Direito, bem como para a conjugação de ambos, tenho de acatar também suas consequências em favor do outro com quem compartilho ou devo compartilhar os benefícios da vida em comunidade, sem exclusão.
V – Evolução da sociedade para o reconhecimento de direitos humanos
Há um histórico de atrocidades na humanidade, desde a antiguidade, com julgamentos por juízos sobrenaturais, encarceramentos sem processo, mortes por sede, inanição e doenças derivadas de falta de higiene em masmorras, mutilações e mortes por tortura, uma infinidade inacreditável de fatos contrários ao domínio dos sentimentos mais brutos e dos instintos mais agressivos. Norbert Elias bem qualificou a civilização como processo de domínio sobre sentimentos, instintos, desejos e vontades, substituídos gradativamente por racionalidade e convenções preservadoras da saúde e da vida, não apenas dos mais fortes como dos menos dotados de poder, dinheiro, bens de produção, educação, segurança alimentar. Enfim, ideias que nos parecem “naturais” hoje e que foram conquistas recentes do que denominamos civilização.
O século XX foi particularmente pródigo em catástrofes, naturais e provocadas, padecimentos impensáveis, intervenções militares, guerra fria, atentados, propostas genocidas, pretensões de superioridade racistas, “limpeza étnica”, fome, miséria, ausência ou precariedade de equipamentos comuns indispensáveis à salubridade de moradias e locais de trabalho e mais o que de deletério se possa imaginar. Nada disso pode orgulhar quem viveu a última centúria, nenhum propósito político ou pessoal pode ser invocado como justificador ético para o que ocorreu.
O mesmo século de tanta destruição e memórias desprestigiosas para a humanidade também foi aquele em que se registrou, após a II Guerra Mundial, iniciativas de superação e busca de socialização do que de melhor a civilização possa ter produzido para humanos, para as diversas formas de vida, para o meio-ambiente, para a preservação da habitabilidade do planeta. A criação da ONU, em 24 de outubro de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, são marcos para uma virada de expectativas em prol do futuro. Ninguém, em sã consciência, pode negar o avanço político, institucional e humanitário representado por essas iniciativas, do que decorre que ninguém deve ter a pretensão de limitação dos benefícios ou exclusão de populações do que de bom essas iniciativas representam.
Tornou-se, paradoxal e perplexamente, lugar comum depreciar os direitos humanos, especialmente quando invocados em favor de determinadas camadas da população no Brasil. Isso é preocupante, pois, além de representar inconsistência argumentativa, demonstra que ainda há, arraigados no subconsciente coletivo, instintos, preconceitos, práticas condenáveis, desejos incontidos, vontade de afirmação de superioridade, racismo endêmico, enfim, um sem número de variáveis contrárias do domínio da razão voltada à superação de mazelas e engrandecimento humano. Há questões de princípio facilmente demonstráveis com exemplos do passado recente e que não podem ser ignoradas, como se apenas uma fração da sociedade merecesse ser “salva da barbárie geral”, cabendo às demais frações, mais cedo o mais tarde, o destino comum da indignidade, da exclusão, da extinção.
VI – Necessidade de disciplina da execução da pena
É lição já antiga e também conquista civilizatória que não há crime e nem pena sem lei anterior que o defina ou a comine. Faz mais de 250 anos que a obra de Cesare Beccaria foi publicada pela primeira vez (1764) e sua atualidade ainda se faz sentir. Desse pensamento há consequências, pois a pena não deve alcançar quem não seja autor, coautor ou partícipe em crime, o que significa haver necessidade de disciplina do cumprimento da pena imposta, ou seja, regramento para execução da pena. Poderia, no entanto, aplicada a pena, ser executada com despreocupação daquilo que para a sociedade em geral é considerado conquista civilizatória?
O sentimento arraigado de que é injusto condenar alguém por crime não definido em lei ou a penas não definidas em lei, que parte de uma concepção elementar de Justiça, parece não haver chegado ao ponto de admitir extensão de idêntico tratamento quanto a execução de penas. A assimilação social da evolução institucional não é automática e será tão dificultosa quanto maior for o grau de violência real e indisciplinada na sociedade. Quando digo “violência real e indisciplinada”, me refiro àquela que o ordenamento jurídico não defere ao Estado, mesmo que seja praticada por particulares. Assim, o ordenamento jurídico permite que o Estado prenda o cidadão em flagrante de cometimento de crime, o que é uma violência ao direito de ir e vir devidamente justificada; esse mesmo ordenamento jurídico não permite que o Estado torture o cidadão para obter confissão de crime ou delação de comparsas, o que seria violência criminosa contra o preso. Se não pode torturar para obter provas, poderia torturar para executar essa mesma pena?
O princípio da reserva legal aplica-se não somente à tipificação criminal e à cominação de penas, mas a toda restrição ao direito de ir e vir, seja na esfera administrativa, como na cível e, por óbvio, na criminal. Assim, por extensão lógica elementar, deve também ser relativamente à execução de pena. A imagem terrível versificada por Dante, elaborada como mensagem gravada no pórtico do Inferno, é poeticamente bela, porém retrata uma verdade de época, relativa aos cárceres: “Deixais toda esperança, ó vós que entrais”. Algo semelhante deveria ser inscrito à entrada do sistema prisional, de forma a incutir no apenado o sentimento de que jamais retornará, que a danação eterna é seu destino, e incutir nos familiares e amigos do apenado o sentimento de perda definitiva, para todo o sempre? Não é esse um pensamento compartilhado mundialmente. Ao contrário, esse pensamento é proscrito em todos os quadrantes do que denominamos mundo civilizado.
Se a pretensão da execução penal é recuperar e ressocializar, permitindo o reingresso de quem foi afastado do convívio social, é indispensável que seja disciplinada, que aos apenados sejam ofertadas condições para esse retorno, que familiares e amigos tenham justa esperança de recuperar esse convívio e que a própria sociedade receba de volta alguém melhor do que a pessoa encaminhada ao cárcere. Isso não se dará com a materialização da imagem infernal poeticamente estabelecida por Dante. Os benefícios da civilização devem ser socializados, estendidos a todos, não podem ser exclusividade de alguns em detrimento da maioria, pois essa é uma situação que gera sentimento de injustiça e violência. O segregado está privado do convívio social, mas não perde a condição de pessoa humana digna de consideração e de atendimento em suas necessidades. Cumprimento de pena não é senha autorizativa de indignidades, é determinação de cuidados do Estado em favor da sociedade e da própria pessoa apenada, para que torne a ser útil à coletividade e à construção de possibilidades de futuros melhores. Não haverá pessoa melhor com tratamento pior; não haverá sociedade melhor com tratamento indigno; não haverá civilização onde houver supressão de seus pressupostos.
VII – Excepcionalidade da pandemia
O hábito de discutir questões sanitárias cotidianas parece restringir-se ao ambiente citadino, frequentemente adotando-se posturas de deslocamento físico dos problemas para regiões periféricas das cidades, arcando a população menos favorecida com o ônus de doenças infectocontagiosas, e sentindo-se os mais favorecidos satisfeitos com não ter esgoto a céu aberto ou depósitos de lixo à porta de casa. Isso não é apenas um fenômeno citadino, mas ocorre igualmente no campo, com a diferença de que os centros políticos decisores não tomam conhecimento ou parecem insensíveis, o que leva o campesino a soluções improvisadas, no desconforto da quase completa ausência de apoio das diversas esferas da administração. Pública. Assim também ocorre com a população dos indesejáveis das cidades e dos campos, despejadas em depósitos de gente malquerida pela coletividade, a que denominamos penitenciárias. A salubridade do estabelecimento penitenciário nem sempre é garantida e a superlotação é tão comum que não causa espanto e é condescendentemente vista como condição de “normalidade” no sistema. Precariedade em matéria de higiene, pessoal e coletiva, ausência de medicamentos básicos, inadequada assistência médico-odontológica, utilização de miolo de pão como substituto de absorvente íntimo, gravidez sob riscos adicionais, sofrimento mental causado por isolamento e, mesmo, em diversos casos, abandono ou falta de referências da família de origem. Há um catálogo sem fim de precariedades no sistema penitenciário, considerando a realidade de tempos ditos “normais”.
Vivemos, nos últimos 15 meses, tempos anormais, com o país assolado por uma crise sanitária cuja referência de semelhança mais próxima data de pouco mais de cem anos. A Covid-19 guarda semelhanças com a histórica pandemia de gripe espanhola de 1918, mas semelhança não é identidade e os tempos são outros. Estamos diante de um vírus com elevada taxa de transmissibilidade e que compromete severamente 5% dos infectados e mata 2% a 2,5% desses infectados. O que aparenta serem números pequenos revela-se impossível de atender em qualquer sistema de saúde do mundo, quando se trata de populações nacionais. No Brasil, essa conta, diante de uma população de 212.000.000, 2% a 2,5% de mortes significam algo em torno de 4.100.000 a 5.200.000 de óbitos, se não houver políticas públicas adequadas de combate à infecção. Hoje, são mais de 430.000 óbitos registrados por Covid-19, com tendência de elevação nos próximos seis meses.
Diante dos fatos, indaga-se: trataremos a população carcerária, brasileira e mineira, como dejetos encaminhados aos lixões que ainda proliferam em tantos municípios do país, a despeito da legislação sobre destinação de resíduos sólidos? Neste mês, estima-se que a população carcerária brasileira seja de 687.546 pessoas, enquanto o número de vagas do sistema é de 440.530, o que revela alta concentração da população carcerária total. Quanto a situação da população carcerária mineira, estimada este mês em 59.551 (houve, no período da pandemia uma redução significativa, pois eram 69.378, o que somente foi possível com enorme esforço judiciário na execução de penas), contam-se 2.119 casos, dos quais 119 confirmados e em isolamento, 1983 confirmados e com alta, 17 óbitos. Tivemos situações de penitenciárias com incidência de infecção em mais da metade de sua população e o esforço de execução penal, com auxílio da Política Nacional de Imunização, conseguiu realizar contenção impeditiva de um desastre de proporções dantescas. De lembrar que essa população, em datas diversas, retornará ao convívio social e retribuirá o que receber.