É meu hábito um passeio à tarde, aos sábados e domingos, sentar-me à mesinha de uma cafeteria, tomar um cappuccino demoradamente, ler um livro, ausentar-me do ambiente, pensar na vida e naquilo que verdadeiramente importa. Desta vez ocupei-me do que se passou nos últimos cinquenta anos, desde que deixei meus primeiros amigos na experiência da transferência de escola. A doença e, por consequência, a aposentadoria por invalidez de meu pai reduziu a proposta de futuro que se entrevia nos seus olhos e o impacto nas vidas dos filhos foi audível da adolescência às obrigações adultas. Tempos difíceis que deixaram marcas, mas também foram aproveitados em admiração das circunstâncias e compreensão dos limites do meu mundo, um mundo que se chocava com os de tantas pessoas, afastando-as por vezes intencionalmente; que orassem pelo desejar de forma alguma.
Meus dezesseis anos foram bons em maldades e deles restaram memórias que não suspeitava. A condição decaída da família era experimentada no que há de trivial, no deslocamento e nos olhares, na transferência de escola e no ar de comiseração daqueles com quem havia dividido as salas de aula até pouco tempo. Também mudei de endereço: das pretensões de escalada social à impressão de ausência de oportunidade em um bairro popular, de classe média e classe média baixa. O carro foi trocado pelo ônibus e o ônibus, tantas vezes, substituído por deslocamentos a pé. Economizar era necessário, de todas as formas, na escola, no supermercado, no divertimento, nas roupas e sapatos emprestados ou doados por primos mais velhos. Compartilhar com o irmão, mesmo não querendo, era o que havia a fazer, sem alternativa. O mundo se transformava e eu me dava conta disso inconscientemente, como fenômeno sentido na pele e escassamente compreendido. Somente mais tarde, na universidade, me daria conta do que aconteceu e da profundidade. Haveria de lembrar sempre, de tempos em tempos, daqueles anos.
Tomava lentamente meu cappuccino enquanto lia Wittgenstein, Culture and Value. Seus aforismos sempre me encantaram, desde os pouco decifráveis do Tratactus Logico-Philosophicus à tradução das Investigações Filosóficas (minha dificuldade com a língua alemã é notória; acho que faria melhor tentando dominar as línguas escritas em alfabeto cirílico, tão guturais aos meus ouvidos quanto o idioma de Goethe). É agradável penetrar o pensamento de um herói (sim, Wittgenstein é para mim um herói, em várias dimensões, e conhecer sua história reforçou ainda mais sua imagem como exemplo) e postular identidade, ainda que apenas parcial, reconhecendo sua importância para minha formação intelectual. Sempre retorno ao aforismo nº 1 do Tractatus, e prefiro a edição inglesa: “The world is everything that is the case”. A tradução literal em língua portuguesa não exerce sobre mim a mesma força.
Há diferenças entre impactos que as diversas línguas oferecem para as mesmas mensagens, por isso creio em Haroldo de Campos e em seu conceito de trnscriação. Wittgenstein ficaria melhor em tradução não literal, algo abrangente da ideia e da intenção, da figuração e do simbólico. Simbólicas são tantas pessoas em nossas vidas, e seus papeis por vezes são preponderantes, a despeito das aparências. Valeria a pena identificar aquilo que é o caso, aquilo que importa, e identificar cada participação, despiciendo caracterizar se positiva ou negativa, pois o negativo ensina melhor do que o positivo. Com o positivo me pacifico, mas com o negativo, como num sistema de recompensas e punições, aprendo e me condiciono. Aprender o que é o caso não é simples como a formulação da frase pode ao incauto sugerir; algum dia ponderarei o significado e a transformação, o ânimo e o cotidiano, algum dia.
As coisas importam enquanto no domínio ou nas circunstâncias dos fatos. Se assim não for, nem coisas haverá, por serem desimportantes para toda sorte de fatos viáveis; as coisas assim, sem destino, nem sequer assumem condição de serem conhecidas no plano da existência, a não ser como a coisas em potência. Se não é o caso, não é o mundo, ao menos para mim e, entendo, para o estimado Ludwig, mas isso não é absoluto e pode ser o caso para outra pessoa, relativizando o mundo por relativizar o que importa. Sou o mundo que importa, na medida de sua importância para mim, da literatura ao fisiculturismo, das artes marciais às canções de gesta, tudo a seu tempo revelado; até a revelação, um mundo inexistente ou omitido.
Tudo isso sempre me emocionou, como um conhaque deliciado à noite, com lua cheia, ao som das montanhas auríferas e dos vales sertanejos de Minas Gerais. Talvez por semelhança com a crueza mineral de Drummond, nisso que há de jazidas expostas e esgotadas na Serra do Curral, descortinando o modernismo poético que domina ainda minha geração extasiada, sinto a aspereza da alma e de tudo que toca ou é porosidade. Não me esqueço da primeira leitura, tempos antes de conhecer Delza, a jovem que aparentava minha idade e que morava em uma casa próxima ao meio do grande quarteirão. Ela inebriou parte de minha juventude, como o vento do mês de agosto, em redemoinhos, traindo o que não era para mim. Tive sempre dificuldade em compreender minha timidez em aproximar; não era timidez em face de Delza, era disseminada e me fazia recluso em pensamentos; talvez passasse por grosseiro e socialmente indigesto, mas isso é tema para sessões de psicanálise, algo para que não me disponho no momento e, talvez, reserve para outra vida, uma vida em que o mundo menos importe.
Anotava à margem dos pensamentos de 1931: “Mais vale a fertilidade de uma ideia do que seu conteúdo de verdade? A política parece dizer que sim, as conveniências sociais aplaudem e as religiões dissentem. Todos parecem certos e errados em seus pontos de vista e no contraste com os demais”. Afinal, a lente existe para o olhar; não importa quantas vezes aumente o objeto, sempre estará condicionada sua apreensão ao que o olho humano enxerga através dela, e o olho apenas enxerga o que a pessoa deseja ver ou é treinada a enxergar. Roseanamente, ignoro muito e bem pouco sei, mas desconfio como ninguém e me coloco pronto para a disparada quando uma ideia me é posta e atrai. O animal não reflete, mas persegue, já o filósofo reflete o caminho para perseguir a meta a que o vulgo chama de destino?
Na mesa ao lado sentou-se um grupo de quatro mulheres. Três gerações que aparentavam ser da mesma família (avó, filhas e neta). Prossegui em minhas conjecturas até que uma referência buscou um fundo de inconsciência e me fez olhar àquela mesa. Das quatro mulheres, apenas uma chamou minha atenção; sua semelhança era notável e a voz pausada me fez duvidar que não fosse quem eu pensava ser, ainda que o antigo veludo fosse substituído por um tom defumado do vício em cigarros. Sem cruzar o limite politicamente correto, para não ser havido como interessado em vida alheia ou assediador, ouvi mais um pouco e observei.
Quarenta e cinco anos passados, a timidez não era a mesma e animei-me a perguntar:
– Senhora, não me leve a mal e não tenha essa abordagem como abuso ou tentativa espúria, mas, por acaso, seu nome seria Delza?
Olhou para mim, junto com as outras três, teve um instante de ponderação, pareceu não identificar a razão de eu haver a ela me dirigido e, quase franzindo o cenho, respondeu:
– Sim, meu nome é Delza. Porque indaga? Eu o conheço?
Respondi que nos conhecemos brevemente há quarenta e cinco anos, aproximadamente, e que ela não estava muito diferente do que me lembrava. Ela agradeceu, aparentando sentir-se lisonjeada, e disse que estudou engenharia química na UFMG, procurando captar a origem do que eu havia dito. Revelei que também estudei na UFMG, mas não me dediquei a nenhum ramo da engenharia, porém à linguística e ao discurso literário, algo que a maioria, ignorando Chomsky, entendia ser conhecimento nada prático, especulativo e ermo ao científico. Afinal, o sentido trágico da vida reclama clareza de cálculo elementar para ser apreciado pelo espírito menos versado e imediatista do brasileiro. Preconceitos e julgamentos à parte, linguística e literatura parecem refinamento dispensável na república dos analfabetos funcionais.
Os sorrisos daquelas que apressadamente identifiquei como sendo irmã, mãe e sobrinha causaram impressão. Autorizada pela família, ela também sorriu. Dei-me conta de que nunca havia sido acariciado com um sorriso de Delza e de que isso não me fazia falta. A vida tem suas traições. O que não mereci na adolescência era exatamente o que não desejava na maturidade e fiquei com a nítida impressão de que as posições estavam invertidas. Pouco ouvi do que disseram na sequência (Delza falava da graduação, do exercício profissional, do casamento e da viuvez sem filhos; ao menos me parece que tenham sido esses os assuntos, mas não tenho certeza, não me importava com o que dizia) e apenas assentia com um leve aceno ou inclinação da cabeça e a emissão de algum monossílabo de incentivo à continuidade do desembaraçado monólogo dividido pelas quatro mulheres. Aquilo invadia meu mundo e não era bom.
Eu não tinha, sinceramente, nenhuma intenção e nem enxergava no passado algo a resgatar ou resolver. Estava embaraçado com perder o fio da meada do livro que lia, enquanto o voluntarismo daquelas mulheres provocava vontade de afastamento. Levantei-me da mesinha, despedi-me, paguei a conta e fui a outra cafeteria, onde a atenção não se dispersaria e Wittgenstein retomaria a dignidade do centro não interrompido dos meus interesses e atenção. Afinal, o mundo é tudo o que é o caso e Delza, sua mãe, irmã e sobrinha não eram naquele momento. Talvez nunca mais as encontre. Foi tempo demais desde a juventude. Tudo mudou muito.