Ponte

Esta noite, transitava pela rua Tomé de Souza, chegando à esquina com rua Rio Grande do Norte. Pretendia ganhar a esquerda, para atravessar a avenida do Contorno pela trincheira e chegar à avenida Nossa Senhora do Carmo. Não tinha um plano de orientação, desejava simplesmente guiar meu carro e olhar a lua, aproveitando os tempos de pandemia, desfrutando de um tráfego menor, baixa presença de partículas em suspensão pela atmosfera, o que permite visão nunca antes experimentada em minha cidade. A nitidez proporcionada pela severa diminuição da poluição ambiental trouxe a possibilidade de percepções inteiramente novas para paisagens antigas.

Observava os carros, as pessoas, os prédios, como jamais havia feito em outros tempos, pois a noite permitia não apenas enxergar, mas imprimir baixa velocidade ao meu carro e deter minha atenção em detalhes que normalmente passariam desapercebidos: o homem de rua andando por sobre a mureta da trincheira, no início do trajeto, as lojas fechadas por quase toda a avenida, os restaurantes com suas mesas recolhidas, servindo direto na porta, para retirada imediata pela clientela, bares e lanchonetes no mesmo esquema de atuação. O Maurizio Gallo, quem diria, de tanta saudade, atendendo apenas por meia folha e com faixa amarela disposta à entrada para impedir o ingresso do público; uma aberração dessa obscuridade retentiva, dessa quebra do sorriso amistoso e da tradicional hospitalidade mineira.

Os pecados estão em nossos olhos, porque deles nos apropriamos a todo instante, de passagem, de esgueira, exercício de ser mal notado para nada ter de explicar a quem se deixa ver na turbidez que até há pouco, um mês havia se passado da declaração de pandemia, a movimentação estridente da cidade impunha ao final de dia, ao encerramento do expediente e ao sagrado exercício do direito de retornar para casa, se não é sexta-feira. Julgamentos por aparência, por estar na fila do ônibus ou dentro de um carro particular, por parecer proprietário ou deslocado para ter domínio sobre veículo tão caro. Vejo alguém, uma mulher, quieta, sentada no meio-fio; é a trabalhadora do comércio de materiais elétricos que fica logo ali perto; mas o comércio está fechado, o que faria naquela região, àquela hora? Deveria estar em casa, em isolamento, distante de toda gente que pudesse contaminar com seu ar displicente, cansado, desmotivado para mais um dia. O coronavírus, certamente, não é seu maior ou imediato problema.

Os grandes supermercados têm suas lojas abertas. Também outros estabelecimentos, cuja dimensão e especialização permite distanciamento do centro da cidade. Mas há diferenças. Para alguns, o atendimento é na porta, para outros, o ingresso e acesso às mercadorias é quase franco, somente há controle para que não embarafustem tantos clientes que se mostrem em aglomeração; todos entram e saem com suas sacolas de compras e a satisfação estampada no rosto, por terem um carro que os leve tão distante para poder comprar melhor, sem o incômodo de gente nas proximidades do estacionamento de rua a pedir algum dinheiro. A distância percorrida com carros é inviável para a população de rua e para os incômodos que possam causar em quem desconhece sua realidade, sua tristeza, seu sofrimento e sua humanidade.

Subi a avenida e fui ganhando a estrada, passando o Ponteio, o trevo do BH Shopping, o acesso ao anel rodoviário e seguindo em frente, na BR 040, por mais 30 km, para alcançar uma estradinha lateral, mal conservada, mas que leva à incrível paisagem do Topo do Mundo. Chega a escandalizar a beleza singular do lugar e a promessa a Deus que se faz sentado à mesa, tomando cerveja artesanal, comendo alguma exclusividade da casa e assistindo, do alto, o cenário de uma cidade que dali não conhecia. Demorei quase sessenta anos para encontrar o ângulo perfeito e descobrir que tudo até então visto é apenas detalhe e que a justificação de existência da cidade com seu nome estava, na verdade, ali, onde não há coberta do véu de catarata, impeditiva de enxergar com inspiração; uma dificuldade visual e do espírito, comprometedora da percepção da beleza da cidade, até que tudo se desvende com a substituição do cristalino. Deparava com o hierático naquele instante, maravilhado, impotente, olhos pousados no horizonte e nenhum balbucio sequer.

O sagrado, então entendi, nos transporta ao sensível e ao sublime, conviventes entre duas realidades que se dividem e quase se tocam. Transpor realidades, da terrenal à mística, é algo que se faz sem nenhum momento, com a só disposição de maravilhar. Se o intelecto, não apenas o intelecto, mas ainda tudo o que há de mais íntimo, sensual e reprimido em nós, desfruta do êxtase daquele tempo em medida quântica, que de um átimo faz o aprendizado da eternidade, a tarefa a que me proponho, nessa recordação insone, é encontrar palavras para dizer e explicar, humanamente, não a origem dos deslumbres terrenais e sagrados, mas como a criação se faz ponte entre o divino e o profano, experimentando de ambos sem mudar de lugar, apenas alterando a perspectiva do espírito, não por ato de vontade, mas por obediência à inspiração celeste que não me deixa passar sem sentir.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress