Poema de Sete Faces: fundamental, belo e misterioso. Essencial para compreender Drummond, sua essência e tudo que produziria. Ser esquerdo na vida é muito mais do que afirmação de oposição e o que um anjo torto anuncia é o avesso da tradição judaico-cristã do ambiente em que o grande poeta nasceu. As sete faces não correspondem aos sete dias da criação, nem poderiam corresponder a alguém cuja personalidade não foi anunciada por meritório habitante celestial. Não era religioso e muito menos cristão ou judeu, era possivelmente ateu, ou assim se confessava, e isso corresponde a dotar o número sete de significação fora de contexto bíblico e o nascimento, ao final, um acontecimento natural e que foge a pretensões metafísicas. Drummond era, sobretudo, profundo, como são capazes os taciturnos, e físico, bem consolidado com as percepções que oferecem os sentidos, racional, sempre. No nascimento, uma ordem antinatural, “Vai Carlos! Ser gauche na vida”. Entusiasticamente contrário ao que se lhe seja imposto e oposto.
E tudo começa por medir a partir da sustentação dos corpos de argumentos e do que se passa na vida aparentemente comum de quem observa. Tarde azul, como seu conhecido azul de metileno, sacia muitos desejos de homens e mulheres, crianças e velhos, patrões e empregados, de tantos e de tudo que forma não apenas uma sociedade, porém um modelo civilizatório inteiro. E ainda assim, como espécie, a humanidade continua a repetir o que desde o início foi enredo de continuar e persistir, uma paisagem que se repete enquanto nada é o mesmo. Novas gerações se formam nas que serão ultrapassadas, a maioria para confirmar, alguns para contrariar, para atrasar ou seguir adiante rumo a um porvir que ninguém sabe o que será. Não há fórmulas, nem eterno retorno ou imortalidade, há apenas o momento em que se vive e aquele em que não mais será.
A cada qual sua função, sua especialidade e comunicação, porém não mais do que isso, do que resulta que toda deliberação é de segunda ou terceira mão. O sentido comunica ao cérebro com recursos da percepção e o cérebro interpreta com auxílio do que se denominou razão, ou logos, não há interpretação original e entre percepção e razão o resultado é de terceira mão. Tão mais velhos, mais distantes da pura percepção e mais afeitos à intermediação hermenêutica da história e da memória, que não são individuais, mas coletivas, não nos pertencem, são obra de todos os fracassos antecedentes. E o sucesso da repetição daquilo que todos fizeram, desde o advento da humanidade, para continuar e persistir, é o que forma o chão da construção do eu gauche, do personagem que cada qual encarna para dizer que vive sem saber o amanhã.
Toda personalidade tem suas circunstâncias, seus disfarces, aquilo atrás de que esconde sua verdade, da mais profunda à puramente superficial, a que se dá o nome de intimidade, porção protegida de conhecimento e de especulação. Há alguém além do que permite enxergar o ilusório de sua roupa, dos adereços que dita a moda, da maquiagem que encobre cicatrizes e suas histórias, da sobriedade que distancia e da empatia que faz parecer uma pessoa tão próxima. É sempre possível notar, a menos que não se queira, que o que faz a pessoa não é o tom de voz e sua maneira de expressão, é algo mais além, algo exigente para se saber e conhecer, algo que nem todos estão dispostos ao sacrifício de saber, por isso que se contentam com a mera aparência. A que possibilidades encaminha a vontade de não saber, a disposição em evitar conhecer, a acomodação em nada querer que não seja um comezinho e despretensioso deixar para lá e esquecer? Nem tudo isso evita, no entanto, queiramos ou não, que diante de nós esteja alguém tão irrelevante quanto a humanidade, tão necessário quanto nosso parente ou consanguíneo.
A despeito de ser ateu, o mundo indaga de Deus, não por crença, talvez que por hábito ou conveniência. E perguntas fundamentes se fazem, a despeito de toda descrença em que algum dia será possível que se formule uma racional resposta. A certeza única é que a humanidade é fraca, débil, escassa e passageira, como ocorre a tudo quanto não seja permanente, a tudo que não seja mineral, puramente. Quem teria o triste descortino de criar o transitório apenas para que seja finito e se importe com um alvorecer que não lhe é reservado? Pior do que criar o transitório, abandoná-lo? A dúvida se extrema, pois do eterno não deveria advir o finito, como nada é diferente de mim, em finalidade ou intento, em existência e fenecimento, se de mim provém.
Há em todos, a despeito de toda desesperança e de tudo que desanima na certeza de encontrar seu ponto final, algo que ainda assim provoca interação e justifica para além da mera razão. Um sentimento de mundo e de universo, de cosmo tendente à perfeição. É uma esperança desprovida de fé, para os ateus, talvez seja a crença e a religião, para os demais, uma vontade de perpetuar, um arbítrio de ser sem incomodar que outro também seja. Existir exige amar com um vasto coração que acolha e agradeça, originalmente, ausente a mera repetição, o progresso da automação, reconhecimento de que há lugar para o incompreensível, o imponderável, o irreconhecível, a novidade! E a novidade é a afirmação do eu, que não é eco ou simples continuação.
Todo desvanecer é fabulação, religiosa ou não, intelecto ou percepção, tudo angustia, se acompanhado de incompreensão ou de insuficiência, da transitoriedade da embriaguez proporcionada pela admiração solitária. O que se fizer é inútil, e, ainda assim, fazemos tudo novamente, nas circunstâncias jamais renovadas de cada momento. O que temos por representações do real, se são de fundamento em sonho ou em delírio, é irreal e, portanto, é nossa crença e nossa religião, ainda que sejam todos ateus.