O ufanista de si

Ninguém é puro, todos temos influências e heranças diversas, mesmo as que desconhecemos. Pura é apenas a ignorância, incapaz de enxergar o que há de vida na fonte em que bebe. Negar heranças (genéticas, culturais, ideológicas) e influências (ambientais, familiares, políticas) equivale a mentir; ninguém se faz do zero, ninguém é verdadeiro ao afirmar-se apenas por autorreferências, ninguém é maduro quando é negacionista dos próprios limites, ditados por sua condição finita, embora tal pessoa possa ser presunçosa, narcisista, deseducada, movida por intenções que não confessa, mas que sua atitude revela: deseja apresentar-se como superior, com histórico exclusivo e que a poupe de desculpar-se por seus erros (normalmente atribuídos ao interlocutor ou a terceiro e, quando o caso, às circunstâncias incontroláveis do governo, do mercado ou ditadas por uma natureza inóspita) e a coloque, por direito quase divino, em posição de liderança entre seus pares, os quais veladamente considera inferiores. Resta para essas pessoas viver da própria retórica e explorar quem nelas acredite.

1 comentário em “O ufanista de si”

  1. Não somos bons em reconhecer nossas próprias insignificâncias. A tradição ocidental, desde o iluminismo, colocou o sujeito no centro da realidade: cogito ergo sum. O indivíduo virou fundamento, a autonomia virou virtude suprema. Daí a obsessão com identidade, autenticidade, autoafirmação.

    Enquanto tradições orientais tratam o “eu” como ilusão a ser dissolvida, nós o idolatramos como se fosse condição de existência. Talvez por isso neguemos que nossas opiniões sejam mera interpretação de simbolos externos. Não por acaso Heidegger, que bebeu dessa fonte, reconheceu que os significados do ser são inseparáveis do tempo. O “ser-aí” é abertura no mundo — um deslocamento do indivíduo para o horizonte em que ele se inscreve.

    Queremos acreditar que somos consciências isoladas, únicas, imaculadas por agentes externos. Mas a onda não existe fora do mar: é apenas forma transitória de uma mesma água. Ao retornar, desaparece como indivíduo — e nossa insegurança ocidental se recusa a admitir que o “ser” (dasein) sempre dependeu e nunca deixou de fazer parte do oceano.

    A tão celebrada “autenticidade” não passa da recusa infantil em aceitar que somos apenas mar disfarçado de onda. No fundo, é isso que o ufanismo de si procura encobrir.

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