O tempo de uma vida não se conta pelos olhos de quem fita o passado com curiosidade, porém com a prévia compreensão da geografia, da demografia, da economia, da política, das ideias vigentes e do modo de pensar, da pretensão dos dominantes e do sentimento dos dominados. Sem essas precauções, o que de melhor se conseguirá é expressar preconceitos, lugares comuns e distorções que confundirão o bem e o mal, os significados, o importante e o reles. O tempo de Felipe dos Santos, imediatamente anterior ao da Capitania de Minas Gerais, que em dezembro de 2020 completará 300 anos, é prenhe de acontecimentos definidores do caráter político do mineiro e de muitas de nossas práticas cotidianas, de cuja origem não há notícias para a franca maioria do nosso povo. Por este e por outros motivos, jogar luzes sobre o tempo afigura-se tarefa civilizacional de relevo.
O final do século XVII e o começo do século XVIII mostram o caminho do desbravamento e do morticínio, da descoberta de metais e da cobiça, do fluxo intenso de pessoas para a região das minas e do despovoamento de regiões na colônia e na metrópole, do enriquecimento rápido e da morte por fome, doenças tropicais, ataques de animais selvagens e lutas corporais. A tarefa de dominação de povos numerosos, mas em estágio de desenvolvimento tecnológico muito inferior, poderia não ser tão complexa, se a extensão territorial fosse circunscrita, de fácil acesso e portadora de desafios conhecidos, o que não era o caso. A transformação dessa dominação em civilização de padrão europeu era uma quase impossibilidade. Mas tudo isso ocorreu em menos de um século e o ano de 1720 foi definidor.
A economia colonial, no imediato antecedente da criação da Capitania de Minas Gerais, era caótica e aventureira, ocorria no turbilhão de formação de uma sociedade inteiramente nova, na imensidão rural de suas escassas vilas, pouco mais que amontoados de casas rústicas e lugares de reunião dos exploradores de auspiciosa mineração; lugar sem lei, sem rei e sem o Deus dos cristãos, onde até os padres percebiam em si a corrosão moral que se atribuía aos trópicos, ao calor, aos indígenas, à insânia de sua missão por lugares nunca antes avistados por europeus. O custo da empresa colonial não era baixo, era praticamente um empreendimento privado, autofinanciado, e que pagava pesados impostos. Os cargos oficiais e no comércio eram ocupados preferencialmente por portugueses, com exclusão dos nativos, fossem eles indígenas, miscigenados ou paulistas. Dificuldades, impostos, desvios, evasão e corrupção não faltavam. Somente a esperança de enriquecer nutria a coragem dos desbravadores que chegavam às minas.
Se chegar à região das minas era tarefa para fortes e resistentes em termos físicos, pois era necessário atravessar serras e rios, ambientes inóspitos e perigosos, também era necessário ostentar qualidades outras para merecer reconhecimento que, no campo moral, prendia-se às lições de Malebranche, então em voga. Nesse compasso, é bom conservar em mente a advertência de que o crítico que perde a razão, por preconceitos contra o criticado ou contra suas proposições, na verdade não entende o que deprecia, pois sua elaboração mental do pensamento alheio já o precede e tolda os princípios de isenção que deveriam presidir sua própria obra. Se o erro deriva do assentimento irrefletido ou de falta de suficiente entendimento, conclui-se que agir assentindo com o mal ou sem suficiente entendimento é caminhar para o erro, decorrendo daí, dessa imprudência mental, a responsabilidade pelo que decorrer da conduta adotada. Se a imprudência mental conduz ao mal, a virtude conduz à verdade, que é de Deus e a chave para o bem, compromisso bastante complexo nessas terras ao início do setecentos.
Outra característica do pensamento de época, que Karl Vossler bem anotou, foi a divisão da sociedade em nobreza de nascimento ou de sangue, contrastando com a nobreza de alma. Assim, a denominada “Boa Sociedade” era titular do direito de dizer quais atributos constituem a nobreza de alma e quem os possui; nas colônias de Portugal, esse apreço pela nobreza da alma, principalmente sob crivo cristão, também foi dominante, protegido pela nobreza de nascimento ou de sangue; a nobreza de nascimento ou de sangue é excludente de todos que não a têm, mas a nobreza de alma é galardão e reconhecimento a que os grandes, dentre os excluídos, podem aspirar; há leis que asseguram a nobreza de nascimento ou de sangue; nobre de alma jamais seria quem atacasse a nobreza de nascimento ou de sangue; integrar a sociedade significa possuir qualidades tidas por essa mesma sociedade como ideais, habilitando ser reconhecido como portador de alma nobre.
A Justiça colonial, que deveria primar pelos sentimentos, religiosidade, modo de pensar e instituições de seu tempo, em muito pouco era melhor que o desassombro de violências dos sertões mineradores, e com seus inúmeros defeitos compactuava com tortura oficial de escravos e pessoas vis (sem posse, sem origem, sem nobreza, degradado ou rebaixado de seu grau social etc) para obtenção de confissão, mesmo quando ausente qualquer meio de prova ou indício, pois em casos que tais o ônus da prova era do acusado. Justiça abertamente injusta e cara, burocrática, servil e corrupta, alguma vez poderia até acertar, mas seu propósito não coincidia com o que atualmente se exige e pretende.
O regime fiscal a que submetida a atividade nas minas não se resumia, como parece a quem tenha visão de superfície, a ser centrada no quinto a ser implantado pelas casas de fundição, de larga tradição no direito português. É comum ouvir-se que os mineradores reclamavam de barriga cheia contra a tributação de vinte por cento de sua produção, o que somente ocorre com o olvido de todo o mais que poderia ser cobrado nos registros e nas passagens, multiplicando os preços de tudo quanto tivesse origem no Porto do Rio de Janeiro (era proibido o comércio com Salvador, como interdito era, também, desenvolver indústria, pois tudo deveria ser adquirido da Coroa), para a entrada como para a saída. Não havia como não revoltar contra um tal regime fiscal que nada dava em troca, cabendo ao empreendimento privado e capacidade de espírito do empreendedor todo trabalho de desenvolvimento e financiamento dos excessos de pretensão da Metrópole colonial.
Os ônus fiscais para a produção minerária eram estrondosos e cercavam a atividade por todos os lados, incentivando o contrabando e a corrupção, insuportavelmente. A honestidade não era atributo favorável para quem se estabelecia na capitania, pois implicava na séria perspectiva de quebra do empreendimento. A pobreza era a condição comum e nenhum era o investimento público em infraestrutura e condições sanitárias para as cidades, onde doenças evitáveis sacrificavam a população. A Metrópole contentava-se em arrecadar, como se recursos minerais não fossem finitos, sonhando com a eternidade, alternando entre capitação (imposto sobre cabeça de escravo, devido pelo senhor) e casas de fundição (centralizadora de toda produção aurífera, que era derretida e solidificada em lingotes, de onde saíam quintados), sua preferência.
Como se vê, motivos para revoltas eram abundantes no cenário fiscal, na indolência administrativa, na burocracia estorvante, nos serviços públicos caros, nas proibições externadas de todas as formas, na capitação, na derrama, no sem-fim de impostos; na retribuição quase nenhuma em serviços públicos, na falta de saneamento, no empobrecimento, na ausência quase total de aparato oficial de Justiça, na preferência de cargos em favor de portugueses, nas distinções de origem etc.
Considerar o regime fiscal a partir apenas do quinto é profunda injustiça, é desconhecimento e erro evidente, não condiz com a verdade daqueles tempos iniciais. Havia muito mais. Essa visão oblíqua, que desconsidera a realidade em seu tempo e afasta comodamente o que estorva o argumento ideologicamente voltado à obtenção de efeito destruidor das certezas históricas formadoras dos fundamentos que unem um povo, não pode sequer merecer a qualificação de meia verdade, pois outra coisa não é senão inteira mentira em seus objetivos. O regime fiscal era terrível para todos, impeditivo de dinamização da economia e de melhorias sociais para o povo, não podemos olvidar.
Felipe dos Santos, que não era nobre de nascimento ou de sangue, também não ostentava situação para que pudesse sua vida ser considerada exemplar, pois era apenas um mediano, sem maiores recursos financeiros, sem patrimônio apreciável de potentado nem realizações que agradassem os maiores da sociedade, na Metrópole colonial ou na colônia propriamente dita. Nunca seria considerado como portador das qualidades indispensáveis para ser admitido como um igual na sociedade e, assim, jamais seria reconhecido como alma nobre. Atacar a nobreza de nascimento ou de sangue, falhando em seu intento, não permitiria ser havido como fundador de nova sociedade que o habilitasse alcançar patamares mais elevados; a frustração de uma sedição condena organizadores a serem traidores ou párias entre contemporâneos. Felipe dos Santos morreu afastado de glórias e feitos heroicos, condenado sumariamente, executado sem formalidades, como é próprio de ocorrer com os de baixa extração. Apesar de tudo, ficou para a eternidade dos nomes ofertados à história, bem mais que seus contemporâneos.