O simbolismo do sertão

No final do século XV, grandes nações de navegantes dividiram o mundo. Com chancela papal, a fé católica expandiria a todo território fecundo que fosse descoberto. A América, então, olvidava o Brasil. Tordesilhas era o limite original, desobedecido por mais de duzentos anos, até ser firmado o Tratado de Madrid. Gentios superaram o que não foi natural, combinada na Europa, sem seu consentimento. Filhos de cristãos e de mistérios florestais, foram reconhecidos, pela conveniência colonizadora, com títulos de pequena nobreza e logo adensaram o Norte de fronteiras colossais.

Pedaço de chão pisado por ancestrais: índios, negros, brancos de longínquo cais, alguns preando, outros guerreando e fugindo, gente colocada junta ao acaso, entre achegados e inimigos, falando tantos idiomas quanto as mães lhes ensinaram. E vieram mamelucos, pardos, mulatos, cafuzos, caboclos, mestiços de todo sincretismo formando línguas gerais por toda colônia, desde o século brutal dos quinhentos. A porção que margeava, convexa, fazendo encaixe com África, foi chamada de Terra de Santa Cruz. Brasileiros eram os exploradores do pau de tinta rubra, cobiçada por toda a Europa.

Tupis, Tupinambás, Aimorés, Guaranis e nações sequer sonhadas; português crioulo, línguas gerais do norte, kiriri no nordeste, tupi missionário, paulista das bandeiras e os sete povos das missões. Uma linguagem bárbara, incompreensível, que jesuítas fizeram por aprender em uma gramática esforçada, escrita por Anchieta, para ensinar a fé, até que a metrópole, sob Pombal, os proscrevesse. O desconhecido, acompanhado de aventura, morte, fratura e recomposição de famílias arredadas, aos poucos compensadas pela lassidão tropical. Sem pelos, antropófagos casuais pelos mistérios e valores do caráter do inimigo, sem perdão nem dor, sem um Deus de amor ou leis emanadas de um rei superior, os locais dedicados a rituais escandindo lusitano horror.

O que não beijava o mar era sertão, ignoto continente de inculta gente de feições várias e iletradas, onde a palavra oral é empenhada. Desertos demográficos, um mundo inexplorado e por adivinhar, na busca de ouro, pedras, riquezas que fizeram a alma colonizadora sonhar e novos riscos arrostar. Não havia sinal de gente: apenas mata, cerrado, agreste, seca, doença e morte. Nas curvas de nível, acompanhando morros, nas aventuras do inesperado e nas agruras da maleita, o corpo encharcado e a pele se fazendo grossa.

O sertão era e continua profundo, composto de terras e gentes, falares angustos e descrições copiosas, que nos ouvidos calam suaves e prazerosas. Era o elegante e maravilhoso de Cardim, com homens e mulheres no sem fim, com nações que despovoaram a costa e disseminaram mamelucos pelo continente. Anchieta traduziu, para o tupi missionário, o evangelho, orações e cantos. Havia, ainda, vastos territórios para a fé de El Rey e línguas gerais outras pelo Grão-Pará e Maranhão, acima de Salvador e pelo respectivo interior, abaixo do Rio de Janeiro e de São Paulo, pelo sul dos guaranis.

De escravos fugidos, ranchos e pilões, renegados, párias, eram as comunidades nos perdidos lugares sem antepassados; sentimento de final da escravidão e do poder dos senhores. Alguns sedentarizados, outros nômades, para nunca serem descobertos e nem atacados, também para cultuar o que na colônia era proibido. Sobreviver da roça, da caça e mineração, do comércio clandestino, do revide e da comunhão, livres de serviços, maus tratos e opressão. À margem, sujeito a combate por um Estado policial, punitivo, preventivo, aliado da destruição, assim fizeram os quilombos um outro sertão.

Repartição de trabalho e de abastança, o dinheiro que fluía para a propriedade se deixava cair das beiradas das mesas. Costumes de dominantes. Mulheres deixadas com seus filhos e posses, não sabendo se a família haveria de tornar a se reunir ou se alguma notícia má inflamaria a algum combate. O engenho era tudo no nordeste e ordenava o universo. Casa grande, senzala e capela, senhor, mulher, filhos e escravos, o tronco, o poder, o sangue e as almas. Empapado o solo de suores e sangue, impregnada a história. De quantas mortes se fazia um engenho? De quanto trabalho bruto se fazia o açúcar? De quantas lágrimas se fez o barro da capela? Grandeza terrena.

Houve também um Euclides que não era grego, como a terra não era mediterrânea, o inimigo não era macedônio e a luta era, talvez, inglória. A República, com o novo homem de ciência e método, narrando o semiárido de vidas, almas e enfrentamentos. E nosso Euclides acusa em manifesto, como Zola acusou. Monumento literário desbravador, desafio para fortes. O homem, sobre a terra sua, não fica passivo; a terra, sob o peso do sol, quer se entregar ao homem; a argamassa de homem e terra, pisada, explodiu em luta de morte. A história de um massacre resta eternizada no teatro de Canudos, que pouco se conta.

O Sertão está em mim e nos sonhos do Rosa, nos momentos de solidão, quando é melhor pensar que agir, despedir de tudo e abraçar. O sertão está na língua embolada, difícil de tratar, ouvir e dizer, que utilizo para comunicar e outro sertanejo é preciso para compreender. O que digo em línguas gerais, a metrópole elimina da catequese. De longe em longe, diferente se faz o idioma em pronúncia; ouvindo de perto, tudo é novo, reage com temor, espanto e pudor. O sertão é linguageiro, maravilha das terras isoladas do interior, enfrentamento, dor, acasalamento e amor, coragem, sensibilidade, retorno e paz.

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