O santo moderno

A vida citadina cobra tributos de toda ordem a quem se afirme disposto a um estilo contrastante com o do campo. Não apenas custeia-se o Estado, mas sacrifica-se a saúde, a convivência familiar, deposita-se esperança em abstrações criadas com imaginação para suprir a incapacidade de ação diante dos infortúnios a que estamos sujeitos, angaria-se desesperança no outro, no primo, no amigo, no irmão. Fortunas são formadas a partir da compreensão prática das possibilidades abertas por aquilo que não se enxerga nem se toca, adquire-se a preço de quase nada a força do semelhante para multiplicar o que de fato inexiste. O credo desloca-se da fé para a volubilidade da fortuna que ora nos eleva, ora pode nos destruir, como roda d’água recebendo e despejando energia que um pequeno curso cavado desvia do ribeirão. A razão substitui a religião e Deus é rebaixado à condição de depósitos bancários.

É nesse cenário que surge o santo moderno, na aridez da indiferença e dos esforços coordenados para finalidades desconhecidas. Cada um sabe de si apenas o suficiente para cumprir uma tarefa especializada, como nenhum outro faria, até descobrir que há outro modo, mais barato e próximo da perfeição, e ser trocado por máquinas de automação e ser forçado a olhar para o sol após uma existência agrilhoado em caverna. A libertação pode ser uma espécie de morte, para se olvidar tudo o que imaginou ser e descobrir que não passou de ilusão. Que Deus, que exemplo, que palavra haverá de seguir em sua solitária existência desprovida de missão e de pão? Sucumbir é destino, escolha ou algo além de sua compreensão? A competição entre os mais aptos o dirá; é o pensamento que a muitos soará como autorização para realizar o impensado em tempos de paz.

Há similitude das grandes cidades com desertos insondáveis, como se cada pessoa se encolhesse em um grão de areia, movido por ventos entre dunas e vales, sempre na secura ambiental de onde a água não chega. Uma voz perdida, não mais que isso, que não ressoa e nem revela importância, é o registro desesperado do sentimento de ausência, de falta de pertença, rumor de má sorte. Mas há os hermeneutas desse desmedido efêmero de se perceber finito e findo, que se manifestam com vozes desejadas pelos ouvidos da grande horda de desvalidos, bem ou mal vestidos. São vozes multiplicadoras que recebem em retorno o último impulso de quem salta para uma prometida e incerta salvação. É o reino da comunicação que se anuncia e reverencia, com suas deidades oportunistas descobrindo a vastidão de tudo quanto seja possibilidade de comunicação entre os que, no sem sentido do gutural, desconhecem o poder da escrita e da leitura.

Um deserto comunicacional é impossibilidade, tristeza, depressão, um noturno que se estabelece nos olhos e na alma, mundividência colapsante. Se nele penetra a alegria, por um instante, é estrela cadente que indica ao crente um nascimento iluminante, algo sobrenatural e revolucionário do pequeno mundo circunstante. As circunstâncias de uma vida sem eco e distante, tudo o que há de diferente do ser, verdades absolutas de principiante ou relativizações de espíritos cambiantes, compõe um cenário nada vibrante, descolorido e abatido, ressequido e desejoso de experiência nova, inebriante. Uma sociedade do espetáculo que se adapta ao fenômeno publicitário implantado, mesmo que imperceptivelmente, na formação do que pensa ser sua autonomia pensante.

O santo moderno é esse comunicador da chama que invade a noite e brilha no seu instante, pronto para aparecer em sua grandeza infinitesimal de partícula quântica. O subatômico do indivíduo é seu locus e primado, ponto de partida e vislumbre de chegada, a harmonia prometida para uma existência degradada, elixir da regeneração.

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