Palestra proferida no Instituto dos Advogados de Minas Gerais
27 de setembro de 2018
Consoada (Manuel Bandeira)
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
I – Advertência inicial
A proposta de abordagem do tema “Mulheres, homoafetividade e sucessões” tem a pretensão de reunir elementos de diversas áreas de investigação para, a partir do entendimento do Direito como expressão de cultura e consolidação de opções políticas, com recursos históricos, filosóficos, linguísticos, antropológicos, sociológicos e políticos chegar à elaboração legislativa atual e à compreensão da jurisprudência que se seguiu. A utilização de textos bíblicos, nessa vertente, terá a perspectiva da literatura, da linguagem e do documento pertinente a diversos períodos históricos; não há, nem poderia haver, nenhuma intenção de ofensa religiosa, negação da palavra de Deus, heresia ou de tentativa, a qualquer título, de ofender sentimento religioso, hermenêutica bíblica, ou o significado íntimo das palavras.
O que se propõe na análise de quaisquer textos ou tradições, mesmo as orais, reduz-se ao puro interesse de desvendar o pensamento por detrás das escolhas efetuadas por povos, governos, autores, conhecidos ou desconhecidos, ostensivos ou incógnitos, e estabelecer uma possível crítica esclarecedora de motivos da evolução jurídica. Antigas tradições e mitologias igualmente serão utilizadas, na medida em que informem utilidade ao propósito de desvendar as origens da discriminação do feminino e do homoafetivo no plano do direito das sucessões. Nem sempre, por óbvio, o que se apresenta como aparentemente natural hoje terá origem no plano das melhores práticas.
A diversificação da espécie humana em face dos demais primatas, a construção da cultura e da educação, na antiguidade grega e romana, a concepção da ocidentalidade cristã no medievo, a afirmação de direitos universais da masculinidade heterossexual, o sacramento do casamento e a depreciação das uniões afastadas dos ritos dominantes, os primórdios do feminismo, tudo isso forma o indispensável à compreensão das razões de alijamento ou afetação negativa em diversos ramos do Direito e, em especial, no que condiz com a matéria sucessória. Há, porém, mais do que uma leitura superficial possa indicar na nova configuração da ordem de vocação hereditária e na ampliação do âmbito de consideração da família e respectivos reflexos nas demais matérias dogmáticas. O asilo da boa razão não é apanágio de apenas lutas de gênero, que têm grande importância; há premências determinantes ao espírito de época que revolucionam entendimentos e práticas, determinam alterações dogmáticas ou a redução de uma civilização a escombros. É plausível pensar que a ocidentalidade tenha alcançado seu limiar e decidido se modificar para evitar soçobrar?
O pensamento, como suas falhas, deve ser debitado à conta de quem o exprime, não de quem o lê ou ouve. Da mesma sorte, eventual falha de exposição também há de ser levada à consideração do menor talento do sujeito proponente da comunicação.
II – A dispersão do tempo no espaço
Pode parecer estranho dizer que o tempo se dispersou no espaço, no entanto, se o fenômeno cultural não é linear, embora apresente traços comuns de desenvolvimento, é razoável reconhecer tempos de paleolítico, neolítico, cerâmica, bronze, ferro em múltiplas regiões, com datações distintas. Nesse sentido, o tempo difunde-se desordenadamente por regiões do globo, convivendo culturas não apenas diferentes, mas em estágios muito distintos em regiões afastadas. O tempo e suas circunstâncias diferem por regiões, ainda que na mesma data. Disso decorre a extrema diversidade de culturas e civilizações, crenças, religiões, éticas, direitos. Em termos de ocidentalidade, há traços comuns por onde judaísmo, cristianismo e islamismo se estabeleceram. Se é certo que toda civilização tem como lastro uma religião dominante e que suas regras se confundem inicialmente com ética e direito, é justo estabelecer parâmetros comparativos do direito com a religião dominante na elaboração civilizatória.
O Direito das Sucessões, por sua imbricação com os demais ramos do Direito Civil e implicações com administração pública e tributação, oferece múltiplas possibilidades dignas de estudo e aferição de convergências e divergências com religião, história, literatura, filosofia, sociologia, antropologia, desenvolvimento das ciências biológicas e exatas. Campos tão vastos não cabem na exploração sintética, de reduzidas proporções, de simples enunciados sobre razões determinantes das opções por modelos sucessórios, o que determina a concentração de esforços em um, dois ângulos, não muito mais. Eis a razão para um olhar mais detido em cultura e religião, com eventuais relances sobre uma literatura que ofereça algo em comum com tais atividades e interesses, em perspectiva imparcial, o quanto possível, para tema tão espraiado.
A visão retrospectiva há de ter algum limite, não inteiramente aleatório, porém que forneça um momento de civilização específica que concentrará a atenção por seus reflexos na atualidade. Embora se possa considerar a ocidentalidade a partir de Carlos Magno, sua formação se deu sob influências mais diretas das civilizações grega e romana e das religiões reveladas (judaísmo, cristianismo e islamismo. Perquirir, portanto, de teologias, ideias e práticas da antiguidade, do medievo, renascimento, iluminismo, modernidade e crises do século XX é mais que necessário. A dispersão geográfica de culturas e religiões, convergindo em um mundo tendente à intensidade da comunicação e das trocas, forma um pano de fundo interessante, cujo conhecimento não pode ser relegado.
Correlatos à sucessão são os temas do parentesco e da morte, com suas consequências em cada época e lugar. O significado, laico como religioso, do parentesco como da morte, não pode ser havido como invariante, pois notoriamente se alterou sob influxo de religiões dominantes e decisões políticas supostamente adequadas, ou assim havidas, ao tempo e suas imperiosidades.
III – Parentesco e dominação masculina
O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. (Michel Foucault)
A elementar afirmativa de que o Direito se situa no âmbito da cultura, contrapondo-se às ciências da natureza, é suficiente por si a ensejar a abertura de discussões partindo de enfoque antropológico. O Direito não é suficiente por si, necessária e impositivamente busca em outros ramos do conhecimento o material fundamentador das opções eleitas para pacificar o grupo social, criar ou manter dominações, atender o que se poderia denominar de “microfísica do poder”1. Em sendo assim, informação antropológica das mais significativas é a construção da dominação masculina, androcentrismo que se impõe como se fosse fato natural, dispensando justificações e aparentando neutralidade, em descompasso com o feminino, sempre demarcado e carente de justificação2. Em síntese, argumenta Bourdieu, mais adiante3: “A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada.” (itálicos no original) A microfísica do poder atua, na relação entre masculino e feminino, no sentido de buscar a afirmação de um esquema androcêntrico que, a partir da constatação das diferenças biológicas, considere como natural algo que é socialmente estabelecido, tornando a mulher, e, com isso, acrescento eu, o universo não masculino, submetidos por uma percepção falsa legitimadora. Há, portanto, na origem, o que poderíamos chamar de pecado, porque não partícipe da ordem natural e elaborado para ser acreditado como se o fosse.
As relações de gênero, originariamente sociais e legitimadas por um esquema mental falseado como se fossem naturais, a partir da sociodicéia masculina, ganham absoluta relevância e merecem estudo por suas amplas repercussões. Uma das primeiras ideias com força impositiva será a do parentesco e a função da mulher nas trocas de dádivas, o que foi exposto aprofundadamente por Marcel Mauss4 e Claude Lévi Strauss5. Por brevidade, para o interesse imediato do que nos propomos, utilizaremos a síntese de Gayle Rubin6. Estabelecida a dominação masculina, a mulher ingressa no sistema de dádivas e trocas como um presente e instrumento de política entre grupos, gerando reciprocidades, ampliando o universo de possibilidades de parcerias sexuais e reprodução. A troca de presentes, servindo a mulher como a própria dádiva, tem o condão de gerar relacionamentos permanentes entre os grupos, formando parentescos em sentido mais amplo do que atualmente costumamos admitir. Até hoje se pode apontar como resquício desse sistema a entrega da mulher ao marido, pelo pai da noiva, na celebração do casamento, algo que, de tão enraizado em nossa cultura, não merece atenção de nubentes e familiares, a não ser quando o pai se recusa à missão, o que é socialmente havido como desaprovação muito agressiva. Operada a “troca de mulheres”, essas ingressam na família dos seus homens, o que significa terem menores direitos e que nesse momento é fundada uma economia política do sexo, não arbitrariamente gerando uma divisão do trabalho e determinando a posição de cada qual.
O desligamento da mulher de sua família original seria gerador de dispositivos legais, no âmbito sucessório, de menor prestígio? Para resposta a essa pergunta, Gayle Rubin7 é bastante sugestiva, afirmando a inexistência de lastro natural para a divisão sexual do trabalho e cogitando de seus propósitos, pontificando:
A divisão do trabalho por sexo, portanto, pode ser vista como um “tabu”: um tabu contra a uniformidade entre homens e mulheres, um tabu que divide os sexos em duas categorias mutuamente excludentes, um tabu que exacerba as diferenças biológicas entre os sexos e, dessa forma, cria o gênero. A divisão do trabalho também pode ser vista como um tabu contra arranjos sexuais diferentes daqueles que envolvam pelo menos um homem e uma mulher, prescrevendo, assim, o casamento heterossexual.
A passagem transcrita, certamente rica de imagens, consegue informar a divisão sexual do trabalho, a dominação masculina, a submissão feminina e a repressão a características não masculinas nas relações sociais. É o suficiente para começar a compreender, também, a restrição de direitos daqueles que destoem da união heterossexual expectada.
IV – A força dos exemplos
Os textos sagrados, as mitologias, a literatura e a tradição oral dos povos consumiram a imaginação de contemporâneos e pósteros na busca de interpretações adequadas a sistemas teológicos e filosóficos. Alguns desses textos, entretanto, são tão impressionantes que merecem relembrança independente de seu caráter sagrado ou de su aplicação em rituais, para serem analisados à luz do que recomendam as regras da boa literatura e mesmo à luz do direito, da filosofia, da sociologia e da antropologia. São histórias exemplares e como tais merecem ser estudadas com o mais apurado sentido, extraindo informações e lições que transcendem o tempo.
Abrão e Sarai, antes de serem Abraão e Sara, formavam um casal de meio-irmãos na Palestina em época de fome. Diante das circunstâncias, foram para o Egito, onde Sarai, muito bela, foi desejada pelo faraó e a ele entregue pelo marido que disse apenas ser irmão daquela mulher e a entregou ao soberano. Mas Abimeleque, inspirado por Deus em um sonho, não tocou Sarai e a devolveu ao meio-irmão e marido e concedeu a Abrão dádivas materiais8.
Abraão, ao final de sua vida, atingindo cento e setenta e cinco anos, deu tudo o que possuía ao filho legítimo, Isaque, havido com Sara em idade já avançada e improvável, afastando do filho legítimo os havidos de concubinas, aos quais deu presentes e enviou para o oriente9.
Essas memoráveis passagens bíblicas, do Antigo Testamento, servem muito bem a dois propósitos: a) demonstrar a situação da mulher, entregue a Abimeleque pelo meio-irmão e também marido, revelando que Sarai vivia sob disciplina de submissão e que prevalecia a vontade do homem (não ingressaremos na discussão dos motivos); b) firmar preceito para o direito sucessório, prestigiando o que se poderia chamar de filho legítimo em detrimento dos demais não havidos da esposa.
No Vocabulário da Grécia Antiga10, verbetes “Mácula” e “Matrimônio”, a situação da mulher igualmente retrata submissão e dependência em sociedade fortemente patriarcal. Afinal, o justo matrimônio somente ocorria com a entrega da mão da mulher ao homem, o que deveria ser feito pelo pai ou por um representante, como um irmão da noiva, em cena ritual e com a pronúncia de sentença induvidosa relativa à finalidade da entrega, que incluía a procriação legítima; fora de tais circunstâncias, a filiação seria ilegítima. Note-se, entretanto, que a procriação é considerado ato impuro e a mulher, ao dar à luz, encontra-se em estado de impureza, devendo passar por ritual de purificação (assim como todo aquele que teve contato com a parturiente).
Na literatura, o cânone da lira grega11 é composto por Álcman, Alceu, Safo, Estesícoro, Íbico, Anacreonte, Simônides, Baquílides e Píndaro. Oito homens e apenas uma mulher, cuja fama, hoje, é bastante contaminada do pensamento medieval que levou à fogueira quase toda sua obra, da qual restam apenas fragmentos. Safo poderia ser uma das musas a cantar e dançar no Parnaso,mas em se tratando de cânone e não de mitologia, de nove possíveis musas, apenas uma mulher. Entre a ficção e a realidade, a expressão masculina ganha amplo destaque e a única expressão feminina passa por ataque milenar, por se aventurar em campo cuja tradição não se comunicava, em sua época, com o feminino.
A luxúria, que merece por Dante12, na Comédia, os cuidados do Círculo II do Inferno, no qual encontram-se aprisionados os praticantes das cinco modalidades da Incontinência (luxúria, gula, avareza e prodigalidade, ira e rancor, heresia), lá nominados diversos pecadores, tem em Francesca, por amor de Paolo, a narradora de seu infortúnio, conduzido pela leitura da história de Lancelot e Guinevere. Uma incontinência sexual determinada pela mulher, incentivada pela leitura de uma história em que outra mulher aparece como motivo para despertar da luxúria em cavaleiro íntegro da corte de seu marido, nada menos que Arthur Pendragon. A mulher, sempre ela, desde Eva, provocando o decaimento do homem, de cuja costela foi feita (portanto, se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, a mulher foi feita de fração menor do homem; se o homem é imagem e semelhança, mas não é Deus, a mulher não é e não está em pé de igualdade com o homem).
Entre prosadores e poetas, na história do Brasil, os espaços de ausência feminina são gigantescos. Carlos Nejar, em sua monumental História da Literatura Brasileira13, dedicando o trato a centenas de autores, nomina, com a dignidade de considerações de nota biográfica e análise da obra, apenas 23 mulheres. Não se debite ao autor má-fé ou má vontade, sua obra é de rara profundidade em terras brasileiras, mas serve como eloquente prova de que a mulher brasileira somente passou a ocupar lugar de destaque na produção literária e, por que não reconhecer, ressalvadas as exceções históricas, a partir do século XX, mais especificamente na segunda metade.
O Dicionário Biográfico Ilustrado de Personalidades da História do Brasil14 igualmente comprova que, nas mais diversas áreas, na história brasileira, a mulher esteve quase ausente do protagonismo, a não ser em período recente. Se não fosse o bastante, História das Mulheres no Brasil15.
Na história, na religião, literatura, produção intelectual, iniciativas políticas, enfim, independentemente do sistema econômico, à mulher foi reservado papel secundário, submetido à dominação masculina, o que, naturalmente, implica em consequências no plano da regulação das relações jurídicas. Quem ocupa papel secundário não tem protagonismo jurídico, do que não poderia resultar nada diverso historicamente do que ser relegado também a segundo plano na ordem da vocação hereditária, em matéria de direito das sucessões.
- FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, organização e tradução Roberto Machado, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 5. ↩︎
- BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina, tradução Maria Helena Kühner, 12ª edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014, p. 18. ↩︎
- Op. cit. p. 33. ↩︎
- Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, in Sociologia e Antropologia, tradução Paulo Neves, 2017, São Paulo: Ubu Editora. ↩︎
- As Estruturas Elementares do Parentesco, 1984, São Paulo: Vozes. ↩︎
- Políticas do Sexo, tradução Jamile Pinheiro Dias, 2017, São Paulo: Ubu Editora, pp. 24/30. ↩︎
- Op. cit. p. 30. ↩︎
- Genesis 20-22. ↩︎
- Genesis 25. ↩︎
- VIAL, Claude.Vocabulário da Grécia Antiga, tradução Karina Jannini, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 1ª edição, 2013. ↩︎
- Para consulta rápida, veja-se RAGUSA, Giuliana, Lira Grega: antologia de poesia arcaica, São Paulo: Hedra, 2013. ↩︎
- ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: inferno, tradução Italo Eugenio Mauro, São Paulo: Ed. 34, 1ª edição, 1998, pp. 49/54. ↩︎
- São Paulo: Leya, 2011. ↩︎
- ERMAKOFF, George (organizador), Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2012. ↩︎
- Mary Del Priore, organizadora, Carla Bassanezi, coordenação de textos, 9ª edição, São Paulo: Contexto, 2007. ↩︎