História, legado e missão

Discurso proferido no IHGMG, em 15 de agosto de 2025, por ocasião da posse do Dr. Antônio Marcos Nohmi como presidente para o período de 2025 a 2028

I – O dia

Nesta data encerra-se a exitosa gestão do presidente José Carlos Serufo. Há um legado de realizações que recebemos com a responsabilidade de continuidade e de expansão, tarefa cometida ao novo presidente Antônio Marcos Nohmi. Mas nesta data também celebramos o 118º aniversário do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Geais – IHGMG, obra imaterial concebida no início do século XX, tornada realidade em 15 de agosto de 1907 e que se faz perene no espírito de cada um de seus fundadores, algo que cultuamos e transmitimos como condição de dignidade a cada novo associado.

Somente estaremos à altura das esperanças que a existência do IHGMG evoca se soubermos, além de quem somos e como e com que propósitos nossa fraternidade atua no mundo de relações que chamamos de sociedade, se compreendermos a realidade que nos cumpre conservar, melhorar e, em alguns casos, superar. Este é o momento propício à reflexão sobre o que a história de nossos esforços revela, de 1907 a 2025, e o que se descortina como missão para a gestão que se inaugura.

II – O que é o nosso Brasil?

Já se disse, por diversas vias e maneiras que o Brasil é um país de retorno trágico: doenças recorrentes, mortes evitáveis, política atrasada, economia que nunca expande o suficiente, mas contrai deseducadamente, séculos perdidos sem projeto de Nação, apenas de poder, um colonialismo cultural que se projeta na ânsia de ganhar muito em riquezas em tempo sovina. É um país de belezas naturais com tristezas expostas a céu aberto, educação precária e, como decorrência, mão de obra em regra inapta, observações superficiais e comum desistência ou inapetência para o essencial ao lema de sua bandeira. Mas é, igualmente, um país de gente nascida com bons propósitos, fé e esperança, com sentimento de amor à terra e suas maravilhas, amor ao próximo, ainda que com imperfeições, abertura ao mundo e oferta de pequenos milagres em substância de alegria, onde o bem se repete com dedicação a cada dia.

Com tudo o que há de bom, nosso Brasil, nossa Minas Gerais, nosso chão têm muito o que superar e, talvez, um dos mais marcantes traços a considerar seja nosso provincianismo, com características peculiares a cada estado da federação, presente neste país-continente.

O que é o provincianismo brasileiro? Facilmente haverá os que dirão ser nossa escassa educação, incivilidade, resistência ao reconhecimento de nossos próprios heróis, adoção fácil do que nos vem do exterior, acusações aos nacionais que se destacam, destruição do que nos incomoda ideologicamente, certo gosto por nos sentirmos inferiores (o decantado complexo de vira-latas), nossa repulsa pelo acadêmico e acolhimento ao deseducado improviso, às gafes internas e internacionais, nossa vontade de manifestação em desalinho, no vestir e na argumentação de nossas lideranças, nosso culto ao próprio fracasso pessoal e das instituições. Tudo isso compõe nosso provincianismo, é verdade. Tudo isso é parte do pior que temos como povo e nação. Tudo isso apenas atesta que somos obra inacabada de nós mesmos, que ainda estamos em construção e não sabemos ao certo o que atingiremos com nossa vocação à empatia, ao altruísmo e à felicidade.

III – O espírito burocrático a superar

Há em nossa terra os burocratas do mérito discursivo e os burocratas do mérito calado, ambos costumam ser encontrados na mesma pessoa, conforme o momento de sua vida. Para fazer-se aquilo que denominamos medalhão, deve cultuar a própria imagem à sombra de algum protetor, repetindo platitudes até acreditar, coisas tais como: “Democracia ou morte”! “O contrato social legitima a violência estatal” “Sem liderança forte não há governabilidade”! “Liberdade não é libertinagem”. Exemplos de inutilidade de eloquência impressionante. Medalhão feito, o burocrata calará a própria ignorância de como chegou onde se encontra, de modo que assim transmita, com sorrisos breves, interjeições e respostas monossilábicas, a sapiência de uma vida sem préstimo, a respeito da qual alguém escreverá memórias.

Dentro desse espírito burocrático esconde-se uma tradição de culto aos defuntos, uma tradição política e cultural por aquilo que está morto e já não se apresenta apto a gerar frutos novos e fortes, que possam alterar a paisagem calcinada de uma seca institucionalizada e que condena política e economia, instituições e pessoas a repetirem indefinidamente, com ares de que para todo o sempre, o funeral de existências em ficção, uma alegoria de um doente que ama a UTI e que por esse amor está sempre a sabotar a própria recuperação.

 Nosso burocrata deve ser flexível o suficiente para atuar como um intelectual engajado, polido e dúctil; tem a flexibilidade do trigo, está em todos os governos, promove restaurações e derrubadas, mas sem exercer nenhuma liderança, protagonismo ou mandato; é partícipe das profundezas do poder real, passando quase sempre despercebido, embora seja, no conjunto, a máquina mais influente do Estado. O verdadeiro burocrata não tem viés político ou ideológico, tem presença e influência, seja qual for o governo, para manter a estabilidade e a governança, caminhando sem ser notado; combate tudo que atente contra seus privilégios, garante sua fatia no Estado.

IV – Purismo, tradição e cultura

Ninguém é puro, todos temos influências e heranças diversas, mesmo as que desconhecemos. Pura é apenas a ignorância, incapaz de enxergar o que há de vida na fonte em que bebe. Negar heranças (genéticas, culturais, ideológicas) e influências (ambientais, familiares, políticas) equivale a mentir; ninguém se faz do zero, ninguém é verdadeiro ao afirmar-se apenas por autorreferências, ninguém é maduro quando é negacionista dos próprios limites, ditados por sua condição finita, embora tal pessoa possa ser presunçosa, narcisista, deseducada, movida por intenções que não confessa, mas que sua atitude revela: deseja apresentar-se como superior, com histórico exclusivo e que poupe desculpar-se por seus erros (normalmente atribuídos ao interlocutor ou a terceiro e, quando o caso, às circunstâncias incontroláveis do governo, do mercado ou ditadas por uma natureza inóspita) e a coloque, por direito quase divino, em posição de liderança entre seus pares, os quais veladamente considera inferiores. Resta para essas pessoas viver da própria retórica e explorar quem nelas acredite.

Aprendemos nossa cultura e praticamos nossa tradição, essa força que atua no inconsciente e nos faz repetir sem pensar aquilo que nos foi ensinado como certo e devido. A tradição integra a cultura, mas não é a cultura toda, é apenas uma parte que nos chega vertical, imposta, quase imperceptivelmente impostas. Respeito aos pais e às pessoas idosas ou mais velhas, frequência a templos de culto religioso, o uso das horas vagas, tudo isso está em nossas tradições e nos é imposto desde pequeninos, mas somente uma parte disso seguiremos na vida adulta, após atingir a maturidade intelectual e a independência emocional. Adultos, escolhemos nosso caminho, afastamos algumas tradições com que fomos criados, mantemos outras, criamos algumas. Entretanto, certamente seguiremos nossa cultura. É mais fácil fazer e desfazer tradições do que criar ou destruir culturas.

V – Escolhas

 “Quem me fez assim foi minha gente e minha terra”, versejou Drummond no poema Explicação, publicado no primeiro livro, Alguma Poesia, de 1930. Nada melhor para dizer, como Borges dizia de Kafka, “que cada escritor cria seus precursores” (André Chermont de Lima: O país do eterno retorno: um ensaio sobre o subdesenvolvimento cultural brasileiro, 1ª edição, Londrina: Editora E.D.A. – Educação, Direito e Cultura, 2024, p. 140). Isso talvez equivalha a dizer que Drummond não se fez em uma tradição literária ou poética estabelecida, mas apesar de não existir uma tradição literária ou poética na qual se encaixasse, se fez da busca de si, perscrutando o elemento humano da terra que era menor do que seu coração.

Falta-nos o conjunto de obras primeiras, fundantes do projeto de Nação, que digam quem somos e qual destino histórico buscamos alcançar. Ficam os discursos vazios, de ocasião, para a imperfeita e improvisada solução de algo posto no meio do caminho como empeço à continuidade de tudo que não seja imitação dessa imperfeição originária, sem face ou projeção.

VI – História, legado e missão

Nos seus 118 anos, que celebramos na passagem da administração de José Carlos Serufo para a de Antônio Marcos Nohmi, o IHGMG é testemunha e guardião, promotor e comunicador, recebe e proporciona legado à gente diversificada de nosso estado, acolhe como missão sua própria existência, é um crítico do que há e do que faz, à busca constante do melhor à causa da cultura, da inteligência, da elaboração, transmissão e recepção do que há de excelente no pensamento. Diante dessa responsabilidade jamais refugaram nossos presidentes, responsáveis políticos por manter a iluminação e afastar uma escuridão simbólica, cujo significado seria esquecimento do ideal maior que o espírito do conhecimento proporcionou, ser refúgio de uma burocracia enorme e engajada, a subtrair energias vitais de nosso povo.

Celebramos a multiplicidade na unidade, os nomes de todos os confrades e confreiras pretéritos, atuais e futuros, a história, a política, a geografia, a humanidade e seus percalços, as realizações perenes e os exemplos deixados, o evolver  dos ideais que movimentam nossas mentes empenhadas em sua realização, João Pinheiro revivido em cada presidente, Têmis e Palas Atena, soberanas a nos guiar, tudo na singeleza de um ato de transmissão, conscientes de que esse legado é nossa missão.

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