Palestra proferida em Juiz de Fora, em 9 de novembro de 2023
Organizador: OAB-MG
A discussão da evolução da jurisprudência, por improvável que pareça a quem acostumado com o dogmatismo do dia a dia, transita antes de tudo pelo trajeto do conhecimento e da ignorância, do poder e das relações de poder, da mediação democrática ou da violência autocrática, da concepção trágica e heterodeterminada das relações mundanas ou da autodeterminação como lastro da imputação e responsabilização, após o que incidirão juízos éticos e morais, aprovando ou reprovando. O direito assimila tudo isso e distingue condutas, vontades e intenções, ampliando ou restringindo o debate de tipicidade e de atipicidade, seus campos e territórios, em um sistema tantas vezes ignorado pelo vulgo. A apreciação leiga não é um norte hermenêutico válido. É o que pretendemos expor na discussão do acolhimento ao Canabidiol.
I – Conhecimento e ignorância
O nada não se confunde com a ignorância, por mais que se diga que o ignorante nada sabe. A ausência completa não tem expressão e a ignorância já é algo, pois é condição de alguém relativamente a algum tema. O nada é impossível, é absoluto, é incompatível com a humanidade, para a qual sempre haverá algo, pois não há humanidade na ausência absoluta. A ignorância, portanto, diverge totalmente do nada. A ignorância sempre tem alguma referência a algo que constitui seu objeto. Em matéria de substâncias, ignora a pessoa comum sua formulação química, suas propriedades físicas, suas possibilidades de atuação e alteração do funcionamento do cérebro e de outros órgãos, seus efeitos negativos e positivos, sua possibilidade de produção de dependência em quem a consome. Isso é um mínimo, pois há muito mais que se poderia explorar, mas já é o suficiente para podermos dizer que ignoramos.
Abundância, perda e escassez de conhecimento convivem na “era da informação”. Temos excesso de informação e dificuldade de fixar atenção em conteúdo específico, pois não sabemos o que é verdadeiramente bom; temos escassez de conhecimento útil por conta de excesso de informação desqualificada em circulação e pouco critério de seleção para o que interessa.
Perdemos muito conhecimento de nossos antepassados, seja relativamente à vida prática, sejam hábitos como a leitura de clássicos em línguas como o latim e o grego. Há, ainda, nos regimes políticos duros ou rígidos, o conhecimento precário, que se mantém escondido, pois sua divulgação é contrária aos interesses do governante ou do governo, e sua produção é havida como ilegal. Tudo deságua em difusão de pouco conhecimento e de larga ignorância. Em matéria de substâncias, seu uso era livre até o início do século XX. Por motivos de política mundial, perdemos todo conhecimento comum de usos e aplicações que nossos avós e bisavós dominavam. Sabemos apenas o que nos é dito ou entregue para leitura, frequentemente com grande carga de preconceitos e pouco conhecimento efetivo, salvo publicações especializadas e científicas.
Peter Burke1 faz uma interessante interpretação da venda aos olhos da Deusa da Justiça, Diké, na tradição grega, como fundamento para julgamentos justos, atendendo, para tanto, a necessidade de que o julgador tenha espírito aberto e ermo a preconceitos: “No que tange à lei, a Deusa da Justiça é frequentemente representada desde a Renascença como cega por uma venda, o que simboliza a ignorância no sentido da abertura do espírito e da falta de preconceito”. Estar de olhos abertos, como por vezes tem sido representada a Deusa da Justiça em tempos atuais, significa não apenas desnaturar uma iconografia, significa atribuir ao julgador conhecimentos que não deveria ter sobre o tema julgado e propiciar ainda que transporte ao ato seus preconceitos, sacrificando o que se entende por Justiça. Em matéria de substâncias, essa atitude pode conduzir resultados absolutamente afrontantes ao que se entende por Justiça.
A ignorância é útil ou inútil? Melhor: a quem ou a que circunstâncias a ignorância beneficia? É dito que uma “ignorância virtuosa” nos inibe de conhecer meios que, em devaneios de raiva e de poder, nos levariam a matar ou a destruir em massa. A ignorância do voto de cada eleitor beneficia a democracia. A diplomacia necessita de segredos para fazer a paz ou conseguir vitórias para vencer guerras. A ignorância de um povo é aval para o populismo de seus líderes. Ignorar limites pode permitir avanços que seriam inibidos pelo conhecimento desses mesmos limites. Ignorar o passado de alguém permite amar o autor de atos abomináveis, respeitar suas melhores ideias e facultar proximidade, como aconteceu com Hans Ulrich Gumbrecht, que desconhecia que seu orientador no doutorado, Martin Heidegger, havia se comprometido com o nazismo. Se o conhecimento pode ser perigoso em circunstâncias e para quem obtém proveito com o desconhecimento alheio, como ocorre com o populista e o autor de atrocidades, a ignorância é o bálsamo necessário ao descanso de quem serve um tirano, como relatam julgamentos de Nuremberg, onde foi comum o argumento simplista de mero cumprimento de ordens no morticínio em campos de concentração.
Aquilo que se sabe existir, mas que se desconhece como existência (por exemplo, a desconfiança da hostilidade do inimigo, o bóson de Higgs, até muito recentemente) é bem diferente do que aquilo que não se sabe que existe e nem que possa existir, como a traição de um aliado. A primeira ignorância é relativa e permite cautela; a segunda ignorância é absoluta e dela não há possibilidade de defesa. Seria a ignorância do inconveniente uma traição de si mesmo por quem não quer saber, ou não quer admitir, os males praticados, como um Stalin interessado em não saber dos mortos na Ucrânia e não admitindo o holodomor, reescrevendo a história para negar seus atos? Donald Rumsfeld sabia das torturas em Abu-Ghraib, mas não admitia sua existência e nem queria saber, mas teria traído a si e à história de seu país silenciando a respeito? Manter o público em ignorância era conveniente para os interesses de Estado e para ganhos pessoais nos dois casos (Stalin e Rumsfeld); os dois casos configuraram traição aos que foram mantidos no desconhecimento dos fatos para autorizar o inadmissível.
Conheço, logo não ignoro? Não é bem assim. Há uma variedade de ignorâncias como há uma variedade de conhecimentos; há graus de ignorância como há graus de conhecimento. Conhecimento e ignorância são conceitos afins e um não existe sem o outro, pois um complementa o outro forçosamente. A qualidade do conhecimento é proporcional à qualidade da ignorância, assim como a quantidade de um é proporcional à quantidade do outro. Os adjetivos multiplicam-se para dizer tantas vezes a mesma ignorância em especialidades acadêmicas distintas que desconhecem os avanços obtidos em outras áreas da ciência, das artes ou da cultura geral.
O hábito determinado pelo gênero, pela profissão e pelos preconceitos (o racismo dentre eles) dirá a percepção e o que a ela escapará para tornar-se ignorância. Assim é a ignorância que o dominante tem da dor dominado relativamente aos seus objetivos como dominante ou à sua condição. A ignorância anda de par não apenas com o conhecimento, mas também com o olhar de quem conhece ou ignora.
Entre várias possibilidades de ignorância, há aquelas próprias dos tempos de crise sanitária, que levam autoridades de saúde a negligenciar o que não se refira ao motivo da crise (como a Covid 19). Há, também, o que Karl Popper2 chamou de “ignorância ativa”, aquilo que não se deseja saber por ser incômodo aos propósitos de quem deseja continuar ignorante para continuar a viver como antes da produção de determinado conhecimento que abala os alicerces de sua área de concentração (como físicos que afastaram a teoria da relatividade e não a aceitaram por ser revolucionária demais para sua compreensão). Há, ainda, a produção de ignorâncias, como é comum na política, o que se denominou “agnotologia” e pode ser entendido como produção de desinformação, algo tão comum aos populismos, o que inclui a desqualificação do debatedor aos olhos dos assistentes do debate, para que sua verdade não seja ouvida ou aceita. Em matéria de substâncias, a desqualificação do usuário e desacreditamento de sua palavra é estratégia comum, o que impede de enxergar que, em determinadas circunstâncias, poderia haver uso socialmente útil. Sempre que se prestigia uma conduta (como tratar alguém como abjeto a partir de uma informação limitada), outra se coloca à sombra da ignorância e todas as escolhas escondem algum mal.
Não saber, não querer saber e não querer que alguém ou que a coletividade saiba são três possibilidades de ignorância. As três são aptas a fomento de erro e seus efeitos, por vezes catastróficos. A ignorância, tantas vezes confinando ou se confundindo com negação, incerteza e preconceito, tem alcance que, somado à política, é determinante de resultados terríveis na história local, regional, nacional e internacional. Habitualmente, na política, a ignorância vem acompanhada de negações estupidificantes, incertezas atrozes, preconceitos bárbaros contra a ciência e erros sem fim a prover de tristeza a população. Quando assim ocorre, há os que pretendem reescrever a história apagando seus erros, contando com o esquecimento ou agindo para que o público esqueça. Junto com o esquecimento, o abuso da credulidade, para que a história seja reescrita na memória do eleitor; uma estratégia política bem conhecida e eficiente. Em matéria de substâncias, isso significa produzir o mal em mancheias por décadas, ou enquanto durar o regime de produção e “normalização” da ignorância.
Tudo que ignoro compõe um quadro de realidade logo à minha frente. Assim ocorre ao indivíduo. Assim ocorre à coletividade. Distância e proximidade são conceitos que interferem. Quadros gerais exigem visão distanciada, abrangente do todo. Quadros específicos exigem proximidade, a ponto de enxergar o que à distância não se nota ou percebe nem com uso de lentes de aumento. A comunicação entre quem está no descortino do quadro específico e quem está no descortino do que quadro geral equivale à troca de olhares entre cegos, se não houver um intermediário que permita um perceber o outro. A ignorância coletiva é, portanto, um fenômeno comunicacional, seja em termos verticais (chefia/subordinado) como horizontais (equivalência de condições ou de competências, sem subordinação). A falha comunicacional proporciona a ignorância coletiva e o resultado pode ser catastrófico, como ocorreu em Chernobyl e no voo da Challenger, dois desastres ocorridos em 1986, como lembra Peter Burke3.
II – Poder e relações de poder
O poder é fato, realidade, criação mental ou ficção? A depender do conceito que se adote, todas as proposições podem ser corretas. O controle das funções orgânicas, da fisiologia, é fato e revela poder da pessoa sobre o próprio corpo. A determinação de um criminoso armado sobre o ânimo da vítima subtraída, como ocorre nos crimes de roubo e de extorsão, é realidade. A influência do agente fiscal do Estado sobre o ânimo do comerciante depende da crença do comerciante na aptidão do agente de cumprir a sanção prometida para irregularidades na escrituração contábil dos seus atos de comércio, sendo, portanto, criação mental ou condicionamento social. A crença do agente público em sua força de coerção, como se fosse um dom pessoal que o acompanha onde estiver, é uma eficiente ficção, que se esfacelará no momento de sua aposentadoria ou do afastamento de suas funções por algum outro motivo, como a instauração de processo administrativo punitivo. Poder, portanto, pode ser fato, realidade, criação mental, ficção e muito mais, a depender do conceito, da distorção conceitual ou da atuação da pessoa no mundo.
Resumir a atuação das pessoas no mundo a busca pelo poder é tentação a que alguns teóricos cedem com relativa facilidade. Seria correto? Se tudo for relação de poder, por ser o poder a capacidade de influência no meio, natural ou artificial, próprio das relações humanas, todos, indistintamente, serão culpados por tudo que ocorre de bom e de ruim, pois tanto o sucesso quanto o insucesso resultam da busca de todos pelo poder e ninguém pode ser absolvido, pois inexistirão inocentes. A culpa de todos a todos absolve e a prevalência do mais forte (física ou moralmente, de fato ou de direito) estará justificada, tanto quanto a submissão forçada do mais fraco, pois, em hipóteses que tais, como assinala Leszek Kotakowski4: “…tanto faz se ajudamos os irmãos ou os torturamos: vamos para o inferno, como também foram todos os pagãos, mesmo os mais nobres”. O chamado poder político se regozija com uma teoria assim dissolvente das culpas e das responsabilidades e a manutenção do status quo resta garantida; o paradoxo da condenação absolutória de todos é seu resultado.
Politicamente, o poder, que se proclama emanado do povo, em seu nome deve ser exercido. Trata-se de discurso bem elaborado para garantir a democracia, que mais não é do que método de controle social e renovação dos investidos no poder político para evitar derramamento de sangue por decorrência da natural degradação das relações de poder. Sem controle social e método para a substituição da investidura no poder, o que se tem é tirania, ditadura, despotismo, insatisfação política e derrubada sangrenta, revolucionária e golpe de Estado como solução para uma insuportável permanência de quem não mais percebe que o poder é factual e transitório. O risco é a anarquia e a anarquia facilmente serve a tirania…
Sem democracia, o que se obtém são tiranias, ditaduras, despotismos e eventuais intervalos anárquicos oferecendo oportunidades para tiranos e ditadores, pois a anarquia não interessa a democratas, mas apenas a oportunismos totalitários em busca de poder absoluto. O poder não corrompe, mas expõe o caráter compatível de quem o exerce; portanto, não devemos reclamar do poder, sempre necessário, mas de nossas escolhas ao definir as franquias e faculdades que delegamos e a quem as delegamos.
O poder é, em apreciação superficial, uma relação de causa e efeito, de violência e submissão de alguém à vontade ou à determinação de outrem. Mas não é apenas isso. A mera relação de causa e efeito se esgota na obtenção de acatamento, independente da vontade ou até contra a vontade, o que significa acatamento por meio da violência. Entretanto, o poder também pode se mostrar pela adesão voluntária, já não se confundindo com violência. Por fim, quando há corpos envolvidos, corpos orgânicos, o poder externo enfrenta o poder interno, que reage, reconhecendo ou contrariando a influência externa. A influência externa é alimento ou veneno, favorecedora ou tóxica. O poder contra o organismo sempre encontrará reação e não obterá submissão. O uso de substâncias ingressa nessa categoria de poder que intoxica ou beneficia, conforme a condição do organismo, e nessa situação merece estudo. O fato complexo do poder merece consideração como relação de submissão, adesão, toxidade e benefício, conforme se exerça sobre o controle do corpo, a saúde orgânica ou a saúde psíquica.
Entre modelos de poder, talvez o mais sujeito a enganos seja o hierárquico, que se manifesta de cima para baixo. Quanto mais intenso e extenso o poder, maior a necessidade de assessoria, que se instala nas frinchas, fora do alcance de observação ou de percepção do poderoso. Assim, o poder extravasa das mãos do poderoso para o domínio de seus auxiliares. As frinchas são fontes de poder sólidas para os auxiliares e pontos cegos para os poderosos. Não há concentração absoluta de poder, isso é ilusão e o deixar-se enganar pela ilusão erode o poder real, que se transfere à assessoria. O poderoso, nas relações hierárquicas, é dependente e sua força não é propriamente sua. Em matéria de substâncias, o poder hierárquico manifesta facetas de obediência e de corrupção, de cumprimento e de desvio, de repressão por acolhimento e por violência; o poder hierárquico, relativamente a substâncias, não questiona limites, apenas corta como gume afiado e pode sangrar quem deveria proteger.
A relação de poder proporciona ao poderoso uma continuidade de si no outro, que a ele se submete ou é submetido. O poderoso terá dois corpos: um físico, tangível, mortal, e outro metafísico, cuja existência é condicionada à continuidade da relação de poder. O corpo metafísico do poderoso morre com a cessão da relação e poder, que tem o peso do luto. O final da relação de poder é uma forma de morte para o poderoso, mas, em matéria de substâncias, pode ser alívio ao submetido, se a substância permite vida e qualidade de vida, não a mera continuidade de uma dor insuportável. Quanto mais assimétrica a relação de poder, maior a concentração em mãos do poderoso e menor a possibilidade de resistência pelo subordinado. A assimetria desiguala e a incerteza quanto ao futuro se instala no subordinado; tanto maior será a incerteza quanto maior e completa a subordinação à própria ignorância do poderoso ou por ele produzida.
O poder também afirma a si pela adesão do subordinado, que assume como sua a ordem apresentada, além da possibilidade do medo de uma sanção negativa, um constrangimento, a violência. O poder baseado tão somente na violência é pobre e frágil, sua marca é o temor, o medo, não o respeito. O poder baseado no respeito é forte5, o que não significa ilustração, informação e conhecimento socializado, senão que consenso conveniente cujo lastro se perde, em algum momento, esquecido em passado distante, como o ocorrido relativamente a substâncias proscritas. Todo poder tem por correspectivo uma reação, que será tanto maior se o consenso se perder no esquecimento, o que significa transformação em violência.
III – Superação do pensamento trágico
A tragédia grega colocava um juízo denso sobre o cidadão; era o inexorável destino que se impunha inescapavelmente. Na política moderna, o destino não tem lugar como algo inescapável; o destino tem lugar apenas como figura de linguagem, cujo gosto é posto em questão; a política afronta o destino e o Estado dinamiza o exercício do poder. Uma escolha se impõe, quando o destino é afastado, quando a heterodeterminação dos acontecimentos não tem mais vez: se a tragédia não está mais no âmbito do inevitável, não é mais decorrente da vontade caprichosa de deuses; as razões intelectuais do poder assumem as rédeas da história e a vontade humana prepondera, cobrando o tributo da imputabilidade, pois ao homem não é dado refugiar-se em argumentos como ser sua ação determinada ou resultante de inafastável determinação exterior, sendo responsável por tudo que de seu pessoal desígnio resultar. O Estado, por meio da lei, assume a função de justiça e deve afastar a tirania lastreada em mistérios de ordem sobrenatural (as forças incontíveis das Fúrias – Tisífone, Megera e Alecto – são reprimidas como fenômenos tipicamente psicológicos; o acordo de vida em sociedade, o contrato social, prevalece).
O poder deve ser legitimado pelo consentimento e uma ética de seu exercício é imposta ao delegatário: a busca pelo melhor e nada menos do que isso. A ética no exercício do poder pressupõe que as leis postas pelo Estado sejam justas, sem o que não haverá Estado de Direito, mas tirania dos homens, criadores de destinos inexoráveis aos que submetem, como se fossem novos deuses, autênticas mitologias de carne e osso em ação. Lima Vaz6 bem lembra a tradição teológica cristã, no Novo Testamento, dizendo:
“O problema da soberania passa a constituir-se em problema fundamental na formação dos Estados nacionais modernos e torna-se o conceito central das teorias políticas. Por outro lado, na tensão entre poder e direito vem confluir a tradição teológica cristã que conhece uma dupla e antitética face do poder (exousia) no ensinamento do Novo Testamento: a face demoníaca do poder como dominação (Lc 4, 5-8) e a face benfazeja do poder como instrumento de Deus em vista do bem (Rm 13, 1-17). É permitido crer que a face demoníaca do poder tenha encontrado seus traços definitivos quando o Estado, na figuração hobesiana do Leviatã, tornar-se a única fonte do Direito. Como exorcizar essa face senão sacralizando a soberania que resulta do pacto de sociedade, coroando-a com os predicados com que Rousseau celebrou a volonté générale? Com efeito, o desaparecimento do antigo solo ontológico que fundava a justiça na teleologia do Bem e sua substituição, no século XVII, pelo racionalismo mecanicista, obriga o pensamento político moderno a buscar na hipótese do pacto de sociedade, ou seja, no vínculo contratual que une os indivíduos na aceitação do poder soberano, o fundamento da justiça política.
IV – Proibição do uso de substâncias
A história da humanidade é recheada de exemplos de uso de substâncias diversas, de efeito psicotrópico, vale dizer, efeito químico capaz de alterar o modo como funciona a mente, sua percepção, seu comportamento, seja acalmando como agitando, como depressor ou antidepressor, perturbando, de maneira geral, o comportamento, podendo causar alucinações e desprender ou dissociar uma pessoa de outras pessoas e do meio material circunstante. A atuação do psicotrópico ocorre no cérebro, como a palavra sugere (psyché = mente; tropos = atração; aquilo que tem atração pela mente, por sua sede, pelo cérebro, alterando o pensar, o sentir, o agir), tendo efeitos como antidepressivos, ansiolíticos, estabilizadores do humor, antipsicóticos, estimulantes, dentre outros.
Thaís Oliveira Mariano e Alice A. M. Chasin, em estudo publicado pelas Faculdades Oswaldo Cruz7, oferecem um panorama convincente e bastante útil, resumindo o que nos interessa quanto ao tema da permissão e proibição do uso de substâncias:
Este artigo tem o objetivo de demonstrar os principais efeitos das drogas psicotrópicas, que alteram a coordenação sináptica do sistema nervoso central, de modo passageiro ou permanente, levando o indivíduo ao uso compulsivo da droga. Sabe-se que para essas drogas exercerem seus efeitos, atuam diretamente nos receptores e transportadores de neurotransmissores. Nesse contexto, o uso dessas substâncias é definido de acordo com seu status sócio legal, em lícitas (legais) e ilícitas (ilegais). As lícitas são aquelas de uso medicinal, porém o mesmo é restrito e o consumo só pode ser através de orientação médica, por meio de um sistema de prescrição. Enquanto as ilícitas são aquelas proibidas por lei, que não podem ser comercializadas e a venda é passível de criminalização. Os principais efeitos nocivos decorrentes do uso da substância psicotrópica podem ser divididos em quatro categorias: efeitos crônicos na saúde; os efeitos biológicos da substância na saúde classificadas nessa categoria as casualidades decorrentes do efeito da substância; e também os efeitos nocivos que compreendem as consequências sociais adversas do uso da substância. Neste estudo, as drogas são classificadas de acordo com o mecanismo de ação no sistema nervoso central: depressoras, estimulantes e perturbadoras.
Sobre a classificação e a atuação dessas substâncias (naturais ou sintéticas) e seus efeitos, para objetivar juízo crítico que as disponha entre lícitas (passíveis de prescrição e controle médico de utilização) e ilícitas (afastadas forçosamente do consumo, sujeitando o infrator a penas diversas previstas em lei), as mesmas autoras, no mesmo estudo, proveitosamente, assinalam:
De acordo com o mecanismo de ação no sistema nervoso central elas são classificadas em: a) Depressora (psicolépticas): barbitúricos, benzodiazepínicos, opiáceos, etanol, inalantes; b) Estimulantes (psicoanalépticas): cocaína, anfetaminas e derivados; c) Perturbadoras (psicodislépticas): Ecstasy, canabinóides; d) Alucinógenos: LSD (IMESC, 2001). As drogas depressoras são aquelas que diminuem a atividade mental, reduzido o tônus psíquico, ou seja, faz com que o cérebro funcione lentamente, reduzindo a atividade motora, a concentração e a capacidade intelectual. As drogas estimulantes são aquelas que potencializam a atividade mental, ou seja, aceleram a atividade de determinados sistemas neuronais, trazendo como implicação um estado de insônia e aceleração dos processos psíquicos. Por fim, as drogas perturbadoras são aquelas que causam confusão mental, agem modificando qualitativamente produzindo desvios de percepções de tempo e espaço, ou seja, produzem distorções no funcionamento do cérebro, como a alucinação e delírios (LISBOA, 2001).
Os principais efeitos nocivos decorrentes do uso da substância psicotrópica podem ser divididos em quatro categorias. Em primeiro lugar, existem efeitos biológicos da substância na saúde, agudos ou a curto prazo. Em segundo lugar, existem efeitos crônicos na saúde, como por exemplo, o álcool, isso inclui cirrose hepática e uma série de outras. Também estão classificadas nessa categoria as casualidades decorrentes do efeito da substância em coordenação motora, concentração e julgamento em circunstâncias em que essas qualidades são exigidas. A terceira e a quarta categorias de efeitos nocivos compreendem as consequências sociais adversas do uso da substância: problemas sociais agudos, como falhas no trabalho, no papel familiar, etc.
Os canabinóides, que nos interessam nesta oportunidade em particular, são classificados entre as substâncias perturbadoras, por sua ação no sistema nervoso central, produzindo, como consequência, confusão mental, modificação da percepção de tempo e de espaço e podendo produzir alucinações e delírios. Isso significa, em termos sociais, potencial de alteração comportamental comprometedora da capacidade de trabalho e desestruturadora do ambiente familiar. Essa, portanto, a razão para proibição de utilização dessas substâncias com a liberdade que outrora, há cem anos, se possibilitava. Não se trata, como alguma teoria da conspiração eventualmente sugeria, de simples conluio de autoridades em prol de falso moralismo decorrente da aplicação de legislação restritiva ao consumo de álcool nos Estados Unidos da América. Há uma base científica para as restrições impostas. Mas será uma restrição tão ampla justificada ainda hoje? O movimento do jogo de poder (algo bem foucaultinano) de tolerância, em determinadas hipóteses, sugere que a proibição indiscriminada não se justifica mais.
Houve excesso de proibição quanto a certas e determinadas substâncias. A proibição ocultou conhecimentos proveitosos, proporcionando e impulsionando preconceitos, impedindo avanços no tratamento de diversas doenças. Sem dúvida que a disciplina proibitiva teve efeitos não apenas benéficos para a sociedade, mas também maléficos, como é próprio das opções políticas, ocultando conhecimentos e desfazendo memórias de utilização válida. A retomada do conhecimento, a superação de preconceitos, a liberação parcimoniosa e estudada é o que vem ocorrendo nas últimas duas décadas e pode ser observado na própria legislação brasileira criminalizadora da produção, do armazenamento, da comercialização e do uso de substâncias, naturais ou sintéticas, encontrando-se os canabinóides listados entre as proibidas.
Atente-se, no entanto, para que uma parcimoniosa tolerância e liberação de certas e determinadas substâncias não significa licença para excessos em medicalização, como adverte Agnes Fonseca Ribeiro Filardi em sua dissertação de mestrado em Medicamentos e Assistência Farmacêutica pela UFMG8:
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) existem muitas variações na forma como os medicamentos psicotrópicos são prescritos nos sistemas de saúde entre os países, e não há uma explicação clara para isso. Qualquer medicamento, incluindo os essenciais, pode ser utilizado de forma inadequada, e a política de medicamentos por si só não garante o uso correto. O uso inapropriado de medicamentos é influenciado por muitos fatores, como conhecimento insuficiente sobre prescrição e uso, influências econômicas em todos os níveis, falta de sistemas reguladores adequados, fatores culturais, sistemas de crenças da comunidade, ausência de comunicação entre médicos e pacientes, informações não objetivas sobre os medicamentos e a influência das propagandas que promovem o seu comércio (WHO, 2005).
As discussões críticas sobre a expansão do uso dos medicamentos em campos sociais para a redefinição das experiências e do comportamento humano têm sido realizadas desde a década de 1970, e ainda se apresentam como atuais. Os debates abordaram questões como as perspectivas do uso excessivo de medicamentos na tentativa de transformar a experiência da dor e o medicamento enquanto mercadoria simbólica em contrapartida ao uso esperado no tratamento das enfermidades. Nesse cenário, manifestou-se a representação do desejo de obter a saúde imediatamente no ato de consumir um produto prático – que poupe o trabalho necessário, pessoal e intransferível para a obtenção da saúde. O medicamento passou a ser utilizado como instrumento terapêutico e bem de consumo, promovendo a transformação da cultura das populações e a diminuição da capacidade de enfrentamento e superação da maior parte dos adoecimentos gerados na vida cotidiana (ILLICH 1975; LEFÈVRE, 1983; HEALY, 2004; TESSER, 2006).
Na atualidade, temos observado um movimento de medicalização da nossa sociedade em várias direções, indicando que todo e qualquer tipo de mal-estar pode ser tratado, principalmente com medicamentos. A medicalização pode ser descrita como um processo no qual os problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças ou distúrbios. Assim, o uso de medicamentos para lidar 15 com os problemas da vida não constituiria somente um processo individual em que o futuro consumidor de cuidados de saúde se convence do que é ser normal, mas também de um fenômeno coletivo próprio às nossas sociedades, que estabelecem os padrões de normalidade (CAPONI, 2009; CONRAD, 2007; MATURO; CONRAD, 2009).
Tenhamos cuidado para não sair de um excesso de proibição e cair em excessos de permissão e descontrole de utilização. Os extremos acabam por conduzir a resultados semelhantes, no que se refere a malefícios sociais.
V – Evolução legislativa recente
A atual legislação antidrogas (Lei nº 11.343/2006), em matéria de repressão à produção, estocagem, comercialização e uso de substâncias proibidas, apresentou avanços em relação à antecedente (Lei nº 6.368/76). Particularmente no que se refere à situação do usuário, dependente ou não, a evolução foi notável, passando da situação de crime, com pena de detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa, no regime revogado (art. 16 da Lei nº 6.368/76), para advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28 da Lei nº 11.343/2006).
A compreensão da situação do usuário como doente ou pessoa em adoecimento, a previsão de penas incompatíveis com sanção criminal, a manutenção da primariedade, a existência de figuras diversas nos §§ do art. 28, tudo isso denota um novo momento na compreensão e no tratamento legislativo do tema, com repercussão jurisprudencial relevante. Uma iluminação sobre temas que ficavam à margem foi providenciada pelo legislador, permitindo avanços hermenêuticos e adequação compatibilizadora, no ambiente nacional, do que já ocorria internacionalmente no enfrentamento à epidemia mundial do consumo de psicotrópicos. Uma legislação tão restritiva, como a que vigia no Brasil, era indecorosa, confundia situações diversas e oferecia vala comum à diversidade, propiciando injustiças graves.
Não chegamos ao ideal, mas avançamos legislativa e jurisprudencialmente, embora haja inconvenientes e erros pelo caminho. Há territórios de atipicidade, firmados legislativamente, que devem ser conhecidos e estudados não apenas pelo direito, mas por ciências cujos conceitos e aplicações se revelem úteis socialmente. A atipicidade é território que não deve ser reservado apenas à ciência teórica, mas incluir sua aplicação imediata à vida do cidadão. Afinal, não à toa a Constituição de 1988 dedica um capítulo inteiro à ciência, tecnologia e inovação (arts. 218 e 219), tendo em vista o bem público (§ 1º do art. 218), que se articula com o art. 1º, I, II e III de nossa vigente Carta Política, o que significa induvidosa opção, que obriga nossa soberania em todas as áreas, não excluindo, por evidente, aplicações favorecedoras aos indivíduos à busca de elevação da qualidade de vida diante dos comprometimentos à sua saúde.
VI – Situação do Canabidiol perante a ANVISA
A ANVISA, desde 28 de novembro de 2022, autorizou EASELABS Laboratório Farmacêutico Ltda (https://consultas.anvisa.gov.br/#/cannabis/25351520419202248/?situacaoRegistro=V, acesso em 6 de novembro de 2023), com validade até novembro de 2027, a produzir solução de canabidiol, 100MG/ML, a ser utilizado com conta-gotas, com destinação comercial, venda sob prescrição médica sujeita a notificação de receita “B”, tarja preta e demais características e exigências encontradas no sítio respectivo.
Essa autorização ocorreu no processo nº 25351.520419/2022-48, sob protocolo nº
20220000002534270, destinado a “PRODUTOS DE CANNABIS (FITOFÁRMACO) – Autorização Sanitária (com concentração de THC até 0,2%)”, sendo as informações respectivas detalhadamente obteníveis no endereço https://consultas.anvisa.gov.br/#/documentos/tecnicos/25351520419202248/ (acesso em 6 de novembro de 2023).
A notícia da autorização foi amplamente divulgada, sendo ainda facilmente encontrada em sítios diversos, tais como https://www.poder360.com.br/saude/anvisa-libera-producao-de-canabidiol-por-laboratorio-mineiro/#:~:text=Medicamento%20derivado%20da%20cannabis%20ser%C3%A1,100mg%2Fml%20com%20receita%20m%C3%A9dica&text=A%20Anvisa%20(Ag%C3%AAncia%20Nacional%20de,%C3%A0%20maconha%2C%20em%20territ%C3%B3rio%20nacional (acesso em 6 de novembro de 2023).
Autorização a diversos produtos à base de cannabis (23 no total) é noticiada no sítio oficial https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2022/anvisa-aprova-novo-produto-de-cannabis-a-ser-fabricado-no-brasil (notícia de 28 de novembro de 2023; acesso em 6 de novembro de 2023). Até o momento, constam como oficialmente autorizados:
- Canabidiol Ease Labs 100 mg/mL;
- Canabidiol Prati-Donaduzzi (20 mg/mL; 50 mg/mL e 200 mg/mL);
- Canabidiol NuNature (17,18 mg/mL);
- Canabidiol NuNature (34,36 mg/mL);
- Canabidiol Farmanguinhos (200 mg/mL);
- Canabidiol Verdemed (50 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Promediol (200 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Zion Medpharma (200 mg/mL);
- Canabidiol Verdemed (23,75 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Cann10 Pharma (200 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Greencare (79,14 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Ease Labs (79,14 mg/mL);
- Canabidiol Belcher150 mg/mL;
- Canabidiol Aura Pharma 50 mg/mL;
- Canabidiol Greencare23,75 mg/mL;
- Canabidiol Active Pharmaceutica (20 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Greencare (160,32 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Mantecorp Farmasa (160,32 mg/mL);
- Extrato de Cannabis sativa Mantecorp Farmasa (79,14 mg/mL);
- Canabidiol Promediol (200 mg/mL);
- Canabidiol Collect (20 mg/mL);
- Canabidiol Mantecorp Farmasa (23,75 mg/mL); e
- Extrato de Cannabis sativa Cannabr 10 mg/mL.
Qualquer pessoa pode consultar produtos à base de cannabis autorizados pela ANVISA no portal da agência, por meio do link: https://consultas.anvisa.gov.br/#/cannabis/ .
Produtos à base de cannabis têm sido indicados para tratamentos de epilepsia, mal de Parkinson, esclerose múltipla, esquizofrenia, dores crônicas, distúrbios do sono, ansiedade e distúrbios alimentares, não excluindo outras hipóteses menos comuns. Há sítios de ampla consulta na internet dedicados ao tema, sejam especializados em medicina como em direito, os quais, por implicarem em propaganda específica, não serão mencionados, bastando utilizar ferramentas de busca para acessar.
VII – Jurisprudência
O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais de Justiça dos Estados da federação têm se debruçado sobre o tema da utilização do Canabidiol nas últimas décadas. Para que alguma evolução ocorresse, foi necessário o indispensável debate legislativo, propiciando a renovação da disciplina penal, assimilando conceitos, distinguindo figuras anteriormente confundidas e submetidas a trato injustamente generalizante. Sob vigência da Lei nº 6.368/76, nem todo exercício hermenêutico conseguiria avançar aos moldes do ocorrido nas últimas décadas; não fosse a evolução legislativa, estaríamos a discutir não recepção de uma lei elaborada para tempos de menor liberdade, em que o jogo de poder distanciava-se do cidadão e colocava-se em perigosa via de violência.
A aplicação medicamentosa dessa substância e sua produção, em pequena escala, para consumo pessoal e terapêutico, tem sido objeto de decisões reiteradas e afirmação de precedentes importantes. Como tudo em matéria de relações de poder, há riscos inerentes, situações ficarão encobertas, desvios ocorrerão, incertezas surgirão, insatisfações no campo privado se registrarão, porém, em termos gerais, a sociedade será beneficiada, melhor atendida, coerentemente tratada. Não há como chegar a uma fórmula jurídica que não desagrade ou desencante parcelas da população em tema tão sujeito a antagonismos, mas o que não se admite no julgador é timidez, tibieza e covardia, especialmente nos temas candentes e nos momentos definidores de rumos civilizacionais.
A promessa constitucional brasileira de uma sociedade mais livre, justa e solidária não pode cair em descrédito por culpa de seus magistrados e por obediência ao atraso. Note-se, entretanto, que os tribunais brasileiros não estão entregando um cheque assinado em branco para qualquer um preencher como lhe for conveniente, pois há critérios, princípios, finalidades e fiscalização: benefício a saúde agravada seriamente, exclusividade da destinação, afastamento da ideia de comércio e de distribuição, observância do que já era permitido importar por autorização da ANVISA, seriedade de conduta, gravidade do crime em caso de violação da franquia concedida no caso específico.
VIII – Notícias e arestos
DECISÃO
07/06/2023 07:40
Ministros do STJ concedem salvo-condutos para o cultivo de cannabis com fins medicinais
Em recentes decisões monocráticas, os ministros das duas turmas de direito penal do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vêm aplicando precedentes e concedendo habeas corpus a pacientes que precisam cultivar cannabis sativa para tratamento de diferentes doenças.
Em decisão do dia 5 de junho, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou que tanto a Quinta Turma quanto a Sexta Turma do STJ consideram que a conduta de plantar cannabis para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz necessária a expedição do salvo-conduto quando comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde.
Na hipótese analisada pelo ministro Reynaldo, a paciente faz uso da terapia canábica para tratamento de fibromialgia, com base em prescrição médica chancelada pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) na oportunidade em que autorizou a importação do medicamento feito à base de canabidiol.
“Nesse contexto, deve ser confirmada a liminar, para que as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas, inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde do paciente, dentro dos limites da prescrição médica”, declarou.
Ao analisar o pedido, o ministro observou que a suspensão das ações sobre esse tema, determinada pela Primeira Seção, no incidente de assunção de competência (IAC) no Recurso Especial 2.024.250, de relatoria da ministra Regina Helena Costa, não se aplica às questões de ordem penal, na qual se discute o direito de liberdade e não a autorização administrativa.
O benefício não impede o controle administrativo do processo de plantio
Seguindo a mesma linha, o ministro Rogerio Schietti Cruz deu provimento a um recurso em habeas corpus para autorizar um homem diagnosticado com ansiedade generalizada a plantar e cultivar de 354 a 238 pés de cannabis por ano, com o objetivo de extrair as propriedades medicinais da planta para uso terapêutico próprio.
No caso dos autos, por conta do quadro de ansiedade, o paciente convive, desde criança, com graves dores de estômago e distúrbios do sono. Assim, no ano de 2020, o homem iniciou tratamento com óleo de cannabis medicinal, sendo este devidamente prescrito e acompanhado por médico. Além do óleo, o médico também manteve a prescrição de flores de cannabis in natura e extratos de THC, os quais apenas podem ser obtidos através do cultivo caseiro.
Em sua decisão, o ministro Schietti apontou que a pretensão do paciente está amparada não só pela prescrição médica, mas também por uma autorização da Anvisa para importação do canabidiol, o que evidencia que a própria agência de vigilância sanitária reconheceu a necessidade de o paciente fazer uso do produto.
Além disso, o ministro destacou que o paciente detinha laudo de engenheiro agrônomo que indicava a quantidade de plantas que deviam ser cultivadas para que a prescrição médica fosse atendida em sua plenitude: de 96 a 57 por ciclo a cada 3 meses, totalizando de 354 a 238 plantas por ano, adicionadas as 10 plantas clonais.
“Fica vedada a comercialização, doação ou transferência a terceiros da matéria-prima ou dos compostos derivados da erva. O benefício não impede o controle administrativo do processo de plantio, cultura e transporte da substância, fora dos termos ora especificados”, concluiu.
Os números destes processos não são divulgados em razão de segredo judicial.
DECISÃO
26/10/2021 20:20
Plano de saúde deve custear medicamento à base de canabidiol com importação autorizada pela Anvisa
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) que condenou uma operadora de plano de saúde a fornecer o medicamento Purodiol 200mg CDB – cuja base é a substância canabidiol, extraída da Cannabis sativa, planta conhecida como maconha – a um paciente diagnosticado com epilepsia grave.
Apesar de não ter registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o remédio teve sua importação excepcional autorizada pela agência, motivo pelo qual o colegiado considerou necessário fazer a distinção (distinguishing) entre o caso analisado e o Tema 990 dos recursos repetitivos.
Segundo consta nos autos, em virtude do quadro epilético, o paciente sofre com crises convulsivas de difícil controle e apresenta retardo no desenvolvimento psicomotor. O remédio foi prescrito pelo médico, mas seu fornecimento foi negado pelo plano de saúde.
Ao condenar a operadora a arcar com a medicação, o TJDFT considerou o fato de que a própria Anvisa autorizou a sua importação e, ainda, que a negativa de fornecer o produto configurou grave violação dos direitos do paciente, agravando o seu quadro de saúde.
No recurso especial, a operadora alegou que a ausência de registro do remédio na Anvisa afastaria a sua obrigação de fornecê-lo aos beneficiários do plano. Também questionou a possibilidade de oferecer ao paciente medicamento que não teria sido devidamente testado e aprovado pelos órgãos competentes brasileiros.
Resolução da Anvisa permite importação de remédio à base de canabidiol
A ministra Nancy Andrighi explicou que, sob a sistemática dos recursos repetitivos, a Segunda Seção, de fato, estabeleceu que as operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela Anvisa (Tema 990). No julgamento – ressaltou –, o colegiado entendeu não ser possível que o Judiciário determinasse às operadoras a importação de produtos não registrados pela autarquia, nos termos do artigo 10, inciso V, da Lei 9.656/1998.
Entretanto, como apontado pelo TJDFT, a relatora destacou que o caso dos autos apresenta a peculiaridade de que, além de o beneficiário ter obtido a autorização para importação excepcional do medicamento, a Resolução Anvisa 17/2015 permite a importação, em caráter de excepcionalidade, de produtos à base de canabidiol em associação com outros canabinoides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
“Essa autorização da Anvisa para a importação excepcional do medicamento para uso próprio sob prescrição médica, como ocorre no particular, é medida que, embora não substitua o devido registro, evidencia a segurança sanitária do fármaco, porquanto pressupõe a análise da agência reguladora quanto à sua segurança e eficácia” – impedindo, inclusive, o enquadramento da conduta nas hipóteses do artigo 10, inciso IV, da Lei 6.437/1977 e dos artigos 12 e 66 da Lei 6.360/1976 –, concluiu a ministra ao negar provimento ao recurso da operadora de saúde.
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
Tema 1161 – Dever do Estado de fornecer medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária.
Há Repercussão?
Sim
Relator(a):
MIN. MARCO AURÉLIO
Leading Case:
Descrição:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 196, 197 e 200, I e II, da Constituição da República, o dever do Estado de fornecer medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária.
Tese:
Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS.
22/06/21, 16h:46min
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que cabe ao Estado fornecer medicamentos que, mesmo sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), tenham sua importação autorizada pela instituição. A determinação da Corte vale desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade do tratamento e a impossibilidade de ele ser substituído por outro previsto pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Canabidiol
O entendimento foi firmado no julgamento do (RE) 1165959, com repercussão geral, na sessão virtual encerrada em 18/6. O processo, de autoria do Estado de São Paulo, chegou ao Supremo após o Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) confirmar decisão de primeira instância e determinar o fornecimento de medicamento à base de canabidiol para um paciente menor de idade que sofre de encefalopatia crônica por citomegalovírus congênito e de epilepsia intratável, com quadro de crises graves e frequentes.
A decisão do TJ levou em consideração a hipossuficiência econômica do paciente e o fato de o medicamento, embora sem registro na Anvisa, ter autorização da autarquia para sua importação. No caso, a Anvisa havia autorizado a importação do medicamento em caráter excepcional, para uso próprio de pessoa física, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado. Laudo médico juntado ao processo atesta, ainda, que o paciente já se submeteu a todos os medicamentos disponíveis no mercado nacional, sem conseguir controlar as crises epiléticas.
No STF, o Estado de São Paulo alegava que a falta de registro na Anvisa impediria a obrigatoriedade de fornecimento do produto. O advogado do paciente, por sua vez, sustentou que o medicamento foi indicado por profissional de medicina como o único meio possível de tratamento e que, após o uso do canabidiol, ele passou de cerca de 80 convulsões diárias para quatro ou cinco.
Importação autorizada
O relator do processo, ministro Marco Aurélio, votou pelo desprovimento ao RE, por entender que é dever do Estado custear medicamento que, embora sem registro na Anvisa, tenha sua importação autorizada, individualmente. No entanto, prevaleceu, no julgamento, o voto do ministro Alexandre de Moraes, que ampliou o rol de condições para o fornecimento.
De acordo com a tese aprovada pela maioria, caberá ao Estado fornecer o medicamento, em termos excepcionais, se, além da importação autorizada pela Anvisa, seja comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento e a impossibilidade de o tratamento ser substituído por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e dos protocolos de intervenção terapêutica do SUS.
Votaram nesse sentido os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Roberto Barroso e as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber. O ministro Edson Fachin acompanhou integralmente o relator. Já o ministro Nunes Marques considerou que o caso tem peculiaridades que inviabilizam a fixação de postulado genérico e aberto.
Fins medicinais
Tanto o relator quanto o ministro Alexandre de Moraes frisaram que a importação do canabidiol é autorizada pela Anvisa e que a Resolução RDC 17/2015 fixa procedimento visando à autorização sanitária a empresas para fabricação e importação, além de requisitos ligados a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização com fins medicinais. Portanto, o fato de o produto não constar das listas oficiais de dispensação e dos protocolos de intervenção terapêutica do SUS não impede que o poder público possa fornecê-los a quem não tem meios de financiar o tratamento da doença.
O ministro Alexandre de Moraes observou que, em julgamentos de outros recursos sobre matéria similar (Temas 500 e 6 da repercussão geral), o STF definiu as mesmas premissas para o fornecimento de fármaco não constante das listas do SUS, apesar das peculiaridades de cada caso. Ele acrescentou, ainda, que a Constituição Federal (artigo 227) consagra a proteção à criança e ao adolescente como um dos valores fundamentais a ser concretizado com prioridade absoluta, cabendo ao Estado, à família e à sociedade assegurar-lhes, entre outros, o direito à saúde.
Tese
A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: “Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na Anvisa, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS.”
EMENTA: HABEAS CORPUS PREVENTIVO. PLANTIO, CULTIVO, POSSE, EXTRAÇÃO E USO DO ÓLEO VEGETAL DE CANNABIS SATIVA L. PARA USO MEDICINAL. POSSIBILIDADE. PACIENTE IDOSO, COM SEQUELAS DECORRENTES DE ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL DE TROMBOEMBOLISMO, QUADRO DEPRESSIVO, CARCINOMA ESPINOCELULAR DE PELE, CARDIOPATIA, QUADRO DEMENCIAL, PULMÃO ENFISEMATOSO E DOENÇA LINFONODAL SISTÊMICA SINTOMÁTICA. PACIENTE QUE JÁ POSSUI AUTORIZAÇÃO PARA IMPORTAÇÃO DE SUBSTÂNCIA DERIVADA DA CANNABIS, COM EFICÁCIA, NO CASO CONCRETO, ATESTADA POR PROFISSIONAL COMPETENTE. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES FINANCEIRAS DE ARCAR COM O ALTO CUSTO DO MEDICAMENTO. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE, ARTIGOS 6º E 196 DA CR/88. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA, ARTIGO 1º, III DA CR/88. POSSIBILIDADE DE PLANTIO, CULTURA E COLHEITA DE VEGETAIS ENTORPECENTES PARA FINS MEDICINAIS ELENCADA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 2º DA LEI 11.343/06. CONCESSÃO DE SALVO CONDUTO. NECESSIDADE. RISCO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL À LIBERDADE DE IR E VIR. LIMINAR RATIFICADA E ORDEM CONCEDIDA.
– Tratando-se de paciente idoso (80 anos), portador de sequelas decorrentes de acidente vascular cerebral de tromboembolismo, quadro depressivo, carcinoma (tumor) espinocelular de pele, cardiopatia, quadro demencial, pulmão enfisematoso e doença linfodonal sistêmica sintomática, que já possuía autorização para a importação de substância derivada da Cannabis pela ANVISA, com melhora, ao fazer uso da substância, de seu quadro, atestada por profissional competente, sem condições de arcar com o alto custo do medicamento, necessária a autorização para o uso medicinal da maconha.
– A saúde e a dignidade do paciente devem prevalecer sobre a proteção aos bens jurídicos tutelados pelos delitos previstos nos artigos 28 e 33 da Lei de Drogas, uma vez que a incriminação do cultivo que tem propósito exclusivamente medicinal não é objetivo das normas incriminadoras previstas na Lei 11.343/06, já que inexiste, nesse caso, qualquer finalidade nociva à saúde pública.
– A Lei 11.343/06, em seu artigo 2º, parágrafo único, ressalva a possibilidade de autorização do plantio, cultura e colheita de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas substâncias entorpecentes nos casos de fins medicinais ou científicos.
– Necessária a concessão de salvo conduto no caso concreto, uma vez que há risco de constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir dos pacientes.
DES. NELSON MISSIAS DE MORAIS (RELATOR)
IX – Conclusão
A evolução do direito no acolhimento ao Canabidiol ocorreu fundamentalmente pela incidência de variáveis que alcançaram o Poder Judiciário, mas que inicialmente se anunciaram no Poder Legislativo, sem cujos esforços haveria apenas estagnação, nos termos do art. 16 da revogada Lei nº 6.368/76, editada com vistas a uma sociedade cujos limites de tolerância política eram bem restritos. A formação, o entendimento e a aplicação do direito são processos políticos que se submetem aos influxos do momento histórico e de regimes escolhidos ou impostos aos povos. Se a Constituição de 1967, com sua extensa e profunda Emenda nª 1, revelou-se apropriada a um regime de cerceio à cidadania, gestando a dura Lei nº 6.368/76, a ebulição social que levou à superação do regime ditatorial haveria de ter por consequência a Constituição de 1988, cognominada Constituição Cidadã, e a reformulação da ordem jurídica (ainda em andamento), com debates legislativos em todas as áreas, renovação da ciência, expandindo benefícios para muito além do próprio Estado, que deve servir o cidadão e não servir-se da cidadania.
A autorização individual para produção e consumo de canabidiol, portanto, não se faz sem responsabilidade, mas conta justamente com respeito a condicionantes democráticos. Assim é que a obtenção de sementes, o plantio, cultivo, colheita, processamento, refino, envasamento, conservação e destinação exclusiva do produto, com proibição de comércio e fornecimento, mesmo a título gratuito, a terceiros, submissão a fiscalização rotineira de órgãos com poder de polícia (sentido de atuação da administração pública para fazer valer das regras de segurança inerentes à atividade) sobre laboratórios, são condicionantes comuns.
Ao Poder Legislativo, desde o exercício do poder constituinte originário, passando pelos mais diversos debates em todas as áreas do conhecimento, que permitiu aos Poderes Executivo e Judiciário, bem como às instituições autônomas, o exercício hermenêutico favorecedor da vida e da qualidade de vida à cidadania, nossos agradecimentos. Aos profissionais da ciência e da tecnologia, que apontaram os caminhos viabilizadores, a extensão desses mesmos agradecimentos. Por fim, à comunidade acadêmica e aos profissionais do direito, nas múltiplas especializações, nossos reconhecimentos.
- Ignorância: uma história global, tradução Rodrigo Seabra, 1ª edição, São Paulo: Vestígio, 2023, p. 25 ↩︎
- Apud BURKE, Peter, op. cit. p. 34. ↩︎
- Id. Ibid. pp.43/4. ↩︎
- Pequenas palestras sobre grandes temas: ensaios sobe a vida cotidiana: três séries, tradução Bogna Pierzynski, São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 13. ↩︎
- HAN, Byung-Chul, O que é poder?, tradução Gabriel Salvi Philipson, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2019, p. 33. ↩︎
- LIMA VAZ, Henrique Cláudio de, Ética e Direito, organização e introdução Cláudia Toledo e Luiz Moreira, São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 179. ↩︎
- file:///C:/Users/bterr/Downloads/Edicao_22_TAIS_OLIVEIRA_MARIANO%20Drogas%20psicotrópicas.pdf, acesso em 04 de novembro de 2023. ↩︎
- file:///C:/Users/bterr/Downloads/filardi__agnes_o_significado_do_uso_dos_medicamentos_psicotr_picos.pdf, acesso em 04 de novembro de 2023. ↩︎