Estado e pressupostos pré-políticos

Um debate foi proposto entre o futuro Papa Bento XVI e Jürgen Habermas (Jürgen Habermas, Joseph Ratzinger: Dialética da secularização: sobre razão e religião: organização e prefácio de Florian Schuller, tradução Alfred J. Keller, Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2007) versando religião e filosofia, voltado à ética da convivência em um Estado liberal preocupado com dignidade humana; um tema ainda não superado, posto que materialmente não realizado, especialmente na América Latina, com suas constantes recaídas autoritárias, à esquerda e à direita do espectro político. Religião e filosofia, tão pouco consideradas nos mananciais da ignorância por aqui largamente cultivada (há uma confusão propositada de filosofia com diletantismo e superficialidade, por um lado, e religião com liturgia e leitura imatura no Brasil de hoje, tudo misturado com política de baixa extração e políticos sem mérito, o que complexifica gravemente o quadro), merecem conhecer-se melhor, descobrir que podem conviver harmonicamente, diagnosticar problemas sociais e oferecer soluções viáveis, o que pode ser bem melhor do que um Estado falsamente tecnocrata instalado, atuante, resistente e especializado em terceirizar responsabilidades por fracassos planejados ou previsíveis.

Como o Estado laico brasileiro convive com a democracia, no plano normativo do direito posto, se pouca ou nenhuma autonomia resta à ética, à religião e aos costumes como fonte ou inspiração do direito? Há, sem dúvida, um arredamento dos limites de atuação da religião e da solidariedade social como colaboradoras na feitura do direito e praticamente completo afastamento como fonte ou inspiração imediata do direito. Isto significa que a convivência entre crentes e laicos se faz com medidas de força, tantas vezes judicializada, com afirmação da laicidade do Estado para afastamento da ética, da solidariedade social e da religião como fonte, inspiração ou influência na formação, na interpretação e na aplicação de um direito estatal fortemente intervencionista. Um sentimento crescente de exclusão deságua em confrontos legislativos e judiciais, com perda para a solidariedade social.

O positivismo jurídico patrocinado pelo Estado Democrático de Direito aparentemente tem enfrentado um dilema, na América Latina e, especificamente, no Brasil: o Estado não tem buscado fundar o direito que produz em fontes preexistentes de solidariedade social, como religiões, filosofias, saberes adotados pelo povo, que passa a ignorar não apenas o processo legislativo como o conteúdo das leis, vivendo uma constituição e um direito infraconstitucional que o Estado não reconhece. Essa situação implica déficit de legitimidade que afeta o caráter autoproclamado democrático do Estado de Direito. Como superar essa contradição de déficit democrático na produção do direito pelo Estado Democrático de Direito? O cidadão brasileiro não é criador ou co-criador, mas apenas destinatário do direito posto pelo Estado?

Há, no Brasil, uma prática de reconhecimento de pressupostos pré-políticos do Estado e do direito? Historicamente, o Estado brasileiro surgiu de uma dominação colonizadora imposta a populações originárias, cujo desenvolvimento político não chegava à constituição de um Estado, muito menos ao sentimento daquilo que denominamos nação. O Estado brasileiro foi resultado de imposição colonial desprovida de vontade de formação de uma nova nação fora do ambiente europeu. Sendo assim, não houve a formação de pressupostos pré-políticos (Jürgen Habermas, Joseph Ratzinger: Dialética da secularização: sobre razão e religião: organização e prefácio de Florian Schuller, tradução Alfred J. Keller, Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2007, p. 37: “…Olhando para o passado, vemos naturalmente que um fundo religioso e uma língua comuns, além de uma renovada consciência nacional, contribuíram para o surgimento de uma solidariedade civil altamente abstrata. Mas, nesse meio tempo, a mentalidade republicana se descolou quase por completo desses pressupostos pré-políticos, e o fato de não estarmos dispostos a morrer ‘pelo Tratado de Nice’ já não constitui um argumento contra uma constituição europeia”.) de fundo religioso, linguístico ou derivado de sentimento fortemente arraigado de nação para constituição de um Estado.

No sentido proposto, o Estado brasileiro surge artificialmente, sua democracia é uma declaração e uma concessão parciais, seus instrumentos de participação não são ofertas à liberdade (o voto obrigatório é demonstração disso), a cidadania é artificial, formal, e o cidadão não é partícipe na formulação da ordem jurídica, mas apenas destinatário da norma. Vale dizer, o cidadão brasileiro deve apenas cumprir a norma jurídica de cuja formação não participa (Jürgen Habermas, Joseph Ratzinger: Dialética da secularização: sobre razão e religião: organização e prefácio de Florian Schuller, tradução Alfred J. Keller, Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2007, pp. 33-4: “…os pressupostos normativos do Estado constitucional democrático são mais exigentes em relação ao papel dos cidadãos que se entendem como autores do direito do que em relação ao papel dos membros de uma sociedade que são destinatários do direito. De destinatários do direito espera-se apenas que, no exercício de suas liberdades [e pretensões] subjetivas, não ultrapassem os limites legais. Deles se exige que obedeçam às leis obrigatórias da liberdade, mas de cidadãos que exercem o papel de colegisladores democráticos espera-se outro tipo de motivação e atitude”.); fosse o cidadão brasileiro colegislador, não haveria voto obrigatório, pois a participação democrática não poderia ser obtida por coação. Os princípios éticos, a religião, a filosofia popular, tudo isso apenas serve para a prática de um direito e de uma constituição que o cidadão tem para si, que não se confunde com aquilo que o Estado laico produz para ser cumprido coercitivamente.

Quando o Estado moderniza suas instituições, mas o cidadão não se sente partícipe ou responsável, a prevalência do interesse próprio na exploração de vantagens e de fendas no sistema é inevitável; o cidadão não se preocupa com o sistema, com a coerência necessária à sua preservação e com os resultados proveitosos à coletividade que deve resultar de sua correta e ética aplicação, mas resigna-se à busca de proveito egoístico (Jürgen Habermas, Joseph Ratzinger: Dialética da secularização: sobre razão e religião: organização e prefácio de Florian Schuller, tradução Alfred J. Keller, Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2007, pp. 40-1: “…Um desvio na modernização da sociedade como um todo poderia perfeitamente levar ao enfraquecimento do vínculo democrático, esgotando aquele tipo de solidariedade da qual o Estado democrático depende, sem que possa reclamá-la juridicamente. Nesse caso se criaria justamente aquela situação visada por Böckenförde: a transformação dos cidadãos de sociedades liberais prósperas e pacíficas em mônadas isoladas que, interessadas tão somente em seus próprios interesses, usam entre si seus direitos subjetivos apenas como armas”.), mesmo que custe a integridade do sistema (com o qual não se sente comprometido), o que resulta em frustração coletiva, pois a predação de Estado artificial, com uma democracia formal, materialmente deficitária, é a regra; a obediência às falhas do sistema jurídico é o que aprende, não o compromisso que deveria haver com o favor da coletividade e a coerência com o sistema liberal de direitos e correspectivas responsabilidades. Há nisso uma lembrança e uma mimetização do Estado colonial imposto sem pressupostos pré-políticos.

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