Discurso da paixão em dois tempos

Houve um tempo em que o sexual e o colérico se uniam ao inspiracional e ao sagrado. É comum dizer que foi um tempo obscuro, materialmente fraco, de ambições desmedidas, serviços desesperançados em um melhor porvir, mas foi um tempo espiritual, inegavelmente. Esse tempo passou com o encerramento da Idade Média e a ascensão do Iluminismo. Não foi repentino esse passamento, houve a transição renascentista e a paixão, a fúria, o furor emocional, sexual, inspiracional, divino, perderam sentido e foram esquecidos. O divino e o sagrado foram postos para fora da casa civilizacional pela razão e pelo método. A razão, dita ciência, ganhou terreno e desalojou a paixão outrora reinante e seus mitos e fantasias. A orgia deixou de celebrar o divino e passou a ser depravação sexual; a paixão ganhou status de morbidade a ser tratada pela psiquiatria e pela psicanálise; o orgasmo não mais invoca violência tumultuária, apenas um ápice sexual. A especialização de certas palavras se deu com perdimento de sua riqueza semântica; empobrecida a palavra, empobrecida a língua, perdeu a cultura, perderam as gentes. O desvanecimento da religião fez a vida perder muito de seu sentido e o indivíduo não mais se enxergou na comunidade. A experiência da paixão foi medicalizada. A melancolia nunca esteve tão em voga, a carência afetiva ganhou foros de generalidade, o outro não merece reconhecimento, é escasso o sentimento de comunidade. Ganhará o espírito nova vitalidade?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress