Definição de Drummond

I – Movimento

O movimento é o espírito do mundo; fenômenos de agitação da natureza são manifestação desse espírito que só vive enquanto se movimenta. Pode soar muito wittgensteiniano e, também, drummondiano. Ignoro que um tenha lido o que o outro escreveu, muito menos que o tenha interpretado à luz de sua filosofia ou de sua filosofia da poesia, no entanto, é possível enxergar nitidamente em ambos essa ideia fundamental. Em Wittgenstein, essa ideia se revela logo ao início de seu Tractatus Logico-Philosophicus, nas proposições 1, 1.1, 1.2, 2, 2.11, publicado originalmente em 1921, e se parece estilisticamente tanto com a repetição de No Meio do Caminho, poema inaugural de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente no primeiro volume da Revista de Antropofagia, em 1928, produzido em momento de tristeza e dor do poeta pela morte de Carlos Flávio, seu filho, quando ainda era um bebê, em março de 1927.

Nel mezzo del camin di mostra vita

mi retrovai per uma selva oscura,

che la diritta via era smarrita.
 

A meio caminhar de nossa vida

fui me encontrar em uma selva escura:

estava a reta minha via perdida.2

Assim se inicia o Canto I d’A Divina Comédia, com que Dante Alighieri inicia seu trajeto pelo Inferno. A expectativa da metade da vida, que Drummond não supunha que pudesse alcançar 85 anos, ocorria na tragédia de seus quase 25 anos e o levava ao inferno da perda, não tendo um Virgílio para ciceroneá-lo. Certamente, sua Beatriz foi Julieta, a filha que tanto amou e cuja morte, em 1987, acredita-se, tenha influenciado na despedida do grande poeta naquele mesmo ano, apenas doze dias após.

Nel mezzo del camin também é poema de Olavo Bilac em que se nota a influência inegável de Dante; tem o tom triste de uma despedida indesejada. Olavo se inspira em Dante e inspira Drummond, uma quadrilha, como a publicada em Alguma Poesia, e todos em momentos difíceis, descendo a infernos particulares. A perda se repete, como estilística3, e o deslocamento de uma consoante transforma em pedra, a que ocorre no meio do caminho e é empeço tumular à felicidade, pois Carlos Flávio não está no seio material da família4.

Drummond pode ser grandemente biográfico, o que não pode ser desconsiderado para entender seu universo:

No meio do caminho
 

No meio do caminho tinha uma perda

tinha uma perda no meio do caminho

tinha uma perda

no meio do caminho tinha uma perda
 

Nunca esquecerei desse fenecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca esquecerei que no meio do caminho

tinha uma perda

tinha uma perda no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma perda.

II – Sete faces drummondianas

A leitura do Poema de Sete Faces é fundamental, não apenas por ser belo e misterioso, mas por ser essencial à compreensão de Drummond, quem era e tudo que produziria pelos mais de cinquenta anos seguintes. Ser esquerdo na vida é muito mais do que afirmação de oposição e o que um anjo torto anuncia é o avesso da tradição judaico-cristã do ambiente em que o grande poeta nasceu. As sete faces não correspondem aos sete dias da criação, nem poderiam os sete dias da criação corresponder a alguém cuja personalidade não foi anunciada por meritório habitante celestial. Não era religioso em sentido comum e muito menos cristão ou judeu, era possivelmente ateu, ou assim se confessava, e isso corresponde a dotar o número sete de significação fora de contexto bíblico; o nascimento, um acontecimento natural, foge a pretensões metafísicas. Drummond era, sobretudo, profundo, como são capazes os taciturnos, e físico, bem consolidado com as percepções que oferecem os sentidos; racional, sempre. No nascimento, uma ordem antinatural, “Vai Carlos! ser gauche na vida”. Entusiasticamente contrário ao que se lhe seja imposto e oposto.

E tudo começa por medir a partir da sustentação dos corpos de argumentos e do que se passa na vida aparentemente comum de quem observa. Tarde azul, como seu conhecido azul de metileno, sacia muitos desejos de homens e mulheres, crianças e velhos, patrões e empregados, de tantos e de tudo que forma não apenas uma sociedade, porém um modelo civilizatório inteiro. Ainda assim, como espécie, a humanidade continua a repetir o que desde o início foi enredo de continuar e persistir, uma paisagem que se refaz enquanto nada é o mesmo. Novas gerações se formam nas que serão ultrapassadas, a maioria para confirmar, alguns para contrariar, para atrasar ou seguir adiante, rumo a um porvir que ninguém sabe o que será. Não há fórmulas, nem eterno retorno ou imortalidade, não há escatologia e nem julgamento no final dos tempos, há apenas o momento em que se vive e aquele que não mais será.

A cada qual sua função, sua especialidade e comunicação, porém não mais do que isso, do que resulta que toda deliberação é de segunda ou de terceira mão. O sentido comunica ao cérebro com recursos da percepção e o cérebro interpreta com auxílio do que se denominou razão, ou logos; não há interpretação original e entre percepção e razão o resultado é de terceira mão. Tão mais velhos, mais distantes da pura percepção e mais afeitos à intermediação hermenêutica da história e da memória, que não são individuais, mas coletivas, não nos pertencem, são obra de todos os fracassos antecedentes, como benjaminianamente se diria5. E o sucesso da repetição daquilo que todos fizeram, desde o advento da humanidade, para continuar e persistir, é o que forma o chão da construção do eu gauche, do personagem que cada qual encarna para dizer que vive sem saber o amanhã.

Toda personalidade tem suas circunstâncias6, seus disfarces, aquilo atrás de que esconde sua verdade, da mais profunda à puramente superficial, a que se dá o nome de intimidade, porção protegida de conhecimento e de especulação. Há alguém além do que permite enxergar o ilusório de sua roupa, dos adereços que dita a moda, da maquiagem que encobre cicatrizes e suas histórias, da sobriedade que distancia e da empatia que faz parecer uma pessoa tão próxima. É sempre possível notar, a menos que não se queira, que o que faz a pessoa não é o tom de voz e sua maneira de expressão, é algo mais além, algo exigente para se saber e conhecer, algo que nem todos estão dispostos ao sacrifício de desvendar, por isso que se contentam com a mera aparência. A que possibilidades encaminha a vontade de não saber, a disposição em evitar conhecer, a acomodação em nada querer que não seja um comezinho e despretensioso deixar para lá e esquecer? Nem tudo isso evita, no entanto, queiramos ou não, que diante de nós esteja alguém tão irrelevante quanto a humanidade, tão necessário quanto nosso parente ou consanguíneo.

A despeito de ser ateu, o mundo indaga de Deus, não por crença, talvez que por hábito ou conveniência. E perguntas fundamentes se fazem, a despeito de toda descrença em que algum dia será possível que se formule uma racional resposta. A certeza única é que a humanidade é fraca, débil, escassa e passageira, como ocorre a tudo quanto não seja permanente, a tudo que não seja mineral, puramente. Quem teria o triste descortino de criar o transitório apenas para que seja finito e se importe com um alvorecer que não lhe é reservado? Pior do que criar o transitório, abandoná-lo? A dúvida se extrema, pois do eterno não deveria advir o finito, como nada é diferente de mim, em finalidade ou intento, em existência e fenecimento, se de mim provém.

Há em todos, a despeito de toda desesperança e de tudo que desanima na certeza de encontrar seu ponto final, algo que ainda assim provoca interação e justifica para além da mera razão. Um sentimento de mundo e de universo, de cosmo tendente à perfeição. É uma esperança desprovida de fé, para os ateus, talvez seja a crença e a religião, para os demais, uma vontade de perpetuar, um arbítrio de ser sem incomodar que outro também seja. Existir exige amar com um vasto coração que acolha e agradeça, originalmente, ausente a mera repetição, o progresso da automação, reconhecimento de que há lugar para o incompreensível, o imponderável, o irreconhecível, a novidade! E a novidade é a afirmação do eu, que não é eco ou simples continuação.

Todo desvanecer é fabulação, religiosa ou não, intelecto ou percepção, tudo angustia, se acompanhado de incompreensão ou de insuficiência, da transitoriedade da embriaguez proporcionada pela admiração solitária. O que se fizer é inútil, e, ainda assim, fazemos tudo novamente, nas circunstâncias jamais renovadas de cada momento. O que temos por representações do real, se são de fundamento em sonho ou em delírio, é irreal e, portanto, é nossa crença e nossa religião, ainda que sejam todos ateus.

III – Condição de Drummond

A condição humana comum é neurótica, sempre a um passo da psicose, por vezes flertando com ou vivenciando uma perversão, e os místicos são profundamente humanos, exageradamente humanos, a ponto de serem confundidos com outra espécie, uma espécie tão exclusiva que seria composta apenas pelo próprio místico. Mas isso não desfaz sua exagerada e essencial humanidade. Seria Dummond, na verdade, um místico inconfesso que fez da poesia seu púlpito e dos versos uma teogonia? Talvez, sim, na visão de Paul Ricoeur7, quando aponta o amor como poesia, como hino, e isto não parece diferente do que fez Drummond por toda vida.

Ele não fabulava religiosamente, isto contrariaria sua forma de inteligência, embora seu modo de ser revelasse certa angústia que poderia ser superada ou evitada pela fabulação religiosa. O ateísmo drummondiano seria apenas um disfarce para seu profundo misticismo? Isso é mais do que indagação, é mais do que uma tese, pode revolver toda análise de sua obra poética e o equilíbrio entre ação e criação, os fatos, a fé e o mundo.

Na física, como na vida social, o equilíbrio é uma busca para preservação das coisas, do ambiente e da salubridade de um modus. Se o equilíbrio é o princípio, o reequilíbrio é uma necessidade. Cada ação provoca uma reação reequilibradora. Não há inocência ou culpa, tudo é resumido em equilíbrio, desequilíbrio e reequilíbrio. Os instrumentos do reequilíbrio, se falham, provocam novos desequilíbrios ou agravam os existentes, ensejando ondas em cadeia, tudo desestruturando. Um ateísmo que oculta um misticismo de profunda humanidade não deixa de ser reequilíbrio que nega a negação e torna o argumento positivo. Pelo princípio do equilíbrio, todo desequilíbrio criador será compensado e a criação, ao final, a todos beneficiará.

A novidade estética pode ser uma antiguidade de outra parte do mundo ou em diverso autor de mesma cultura linguística. O artista das palavras faz de sua obra alteração das formas do mundo linguístico natural, cria novas expressões, reproduz outras e estiliza. O talento individualiza o trabalho do poeta, cuja identidade é assim estabelecida, se for estabelecida. A sobrevivência do trabalho é a sobrevivência do próprio poeta, que cria pontes entre o sagrado e o profano, o natural e o sobrenatural, comunicação do presente com o passado, expectativas do porvir, encantamento e melancolia, múltiplos caminhos e modos de caminhar. O equilíbrio é um imperativo, logo, é impositivo e perante ele não há culpados ou inocentes, pois a todos submete. Drummond certamente sabia disso; mesmo intuitivamente, era sua condição.

IV – Definição de Drummond

No início, era o verbo drummondiano esgrimido como expressão íntima que nem todos percebiam e interpretavam como superficialidade e desrazão, pedras sendo simples obstáculos no caminho, perdas sendo desmembradas do poeta e relegadas. O modernismo, em sua segunda fase, se abriria à linguagem aproximativa do comum, do cotidiano das cidades, buscando simplicidade e acessibilidade, com o que tantos intérpretes de Drummond se confundiram e identificaram a repetição da pedra, no poema No meio do Caminho, com empeço reiterado que também constitui o próprio caminho de uma vida.

Possivelmente Salvador Dali, em 1931, foi quem deu, sem conhecer seu irmão de alma itabirano, a melhor interpretação pictórica do sentimento definidor de Drummond. A Persistência da Memória embaralha racionalidade e irracionalidade, vida e putrefação, alerta eterno à facticidade e transitoriedade da humanidade lançada heideggerianamente8 ao mundo. Há nisso uma confluência de pensamentos sobre o mundo, a condição humana e definição de espaços entre arte, linguagem e filosofia, tudo que pode ser dito estritamente em confidência, itabirana confidência.

  1. WITTGENSTEIN, Ludwig, Tactatus Logico-Philosophicus, tradução, apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos, introdução de Bertrand Russel, 3ª edição, 4ª reimpressão, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020. ↩︎
  2. ALIGUIERI, Dante, A Divina Comédia-Inferno, tradução e notas de Italo Eugenio Mauro, São Paulo: Editora 34, 1998. ↩︎
  3. TELES, Gilberto Mendonça, Drummond e a estilística da repetição, 4ª edição revista e aumentada, Rio de Janeiro: Batel, 2020. ↩︎
  4. TELES, Drummond e a estilística da repetição, p. 52. ↩︎
  5. BENJAMIN, Walter, Sobre o conceito de história, organização e tradução Adalberto Müller, Márcio Seligmann Silva, 1ª edição, São Paulo: Alameda, 2020, pp. 118/9. ↩︎
  6. Ortega y Gasset, O que é filosofia?, tradução de Felipe Denardi, posfácio de Maria Zambrano, Campinas: Vide Editorial, 2016, pp. 231 e seguintes. ↩︎
  7. Amor e Justiça, tradução Eduardo Brandão, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 22. ↩︎
  8. HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, tradução revisada e apresentação de Márcia Sá Cavalcante Schulback, prefácio de Emmanuel Carneiro Leão, 10ª edição, Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015, pp. 98 e seguintes. ↩︎

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