Da janela lateral

Uma vida se inicia a todo momento. Muitas são as vidas no tempo de uma existência, renovando-se e recomeçando nos momentos definidores. Assim também aconteceu com a bela Isabel Coelho, menina de Santa Cruz de Salinas que foi morar em Belo Horizonte para estudar arquitetura, mas que terminou cursando direito e se encontrando no magistério. Na mudança, sua nova vida. No casamento, ainda muito jovem, a definitiva constituição da promessa de família, mesmo quando o divórcio sobreveio e o término da criação dos filhos foi seu dever, cumprido com satisfação. Atravessando as décadas, seus filhos, afinal, estavam criados e um sentimento bom invadia o espírito; filhos formados e encaminhados.

Ela ainda não havia completado a caminhada dos cinquenta anos e decidiu mudar de ares, sair do Coração Eucarístico, onde a proximidade com o campus da PUC facilitava o dia-a-dia de professora universitária, e morar na Savassi, lecionar no curso de Direito da Praça da Liberdade, poder passear e aventurar-se em vida cultural mais agitada e satisfatória, visitar livrarias e assistir eventos na Academia Mineira de Letras, no CCBB, deslocar ligeiramente e chegar ao Palácio das Artes, noutra direção, ganhar o Sesc Paladium; tudo próximo e ao alcance de curtas caminhadas ou de uma corrida breve de Uber. A Rua Sergipe, na altura do número 1.070, tem atrativos adicionais: bares, restaurantes, cafés, lojas e uma vizinhança certamente privilegiada, alegre e bem-disposta.

A Rua Levindo Lopes, paralela à direita, ligando a Avenida do Contorno aos fundos do Palácio da Liberdade, oferece também alternativas noturnas variadas e de superior qualidade. O toque evocativo do grande cinema registra o Gilda, um bar digno da frase (pronunciada pelo personagem Johnny Farrel, um vigarista vivido por Glenn Ford) que notabilizou o personagem de Rita Hayworth cantando Put the Blame on Mame: “Nunca houve uma mulher como Gilda”. E foi no embevecimento do Gilda, ouvindo Sangah Noona cantar e tocar piano, lendo a proposição 4.003 do Tractatus de Wittgenstein, que se deu conta de algo que estava em sua vida: tudo o que sabia, ou que podia saber, não era verdade necessariamente, porém a possibilidade e a plausibilidade de ser verdade, uma relação de correspondência do fato à narrativa como parâmetro de exercício do juízo de veracidade com que se conduz a humanidade; se for verificável, possível, é veraz, o que se torna mais importante do que a verdade propriamente dita no momento de decisão do caminho pelo qual seguir. Espantou-se com a conclusão proposicional: “E não é de admirar que os problemas mais profundos não sejam propriamente problemas”. O contrassenso é o comando do falso problema com que nos contaminamos ao indagar do bom e do belo, se há identidade entre ambos, assim como se a felicidade é a própria vida ou apenas um momento. Não é possível responder em caráter satisfativo e absoluto algo assim, algo que transcende o aristotelismo de tudo quanto está na razão ter passado primeiramente pela percepção.

Nos primeiros dias de sua nova vida, no décimo andar do prédio de apartamentos, onde ocupava o 1.001, com muito ainda por arrumar, móveis por adquirir, persianas por instalar, deparou com o insólito: da janela lateral da sala de estar, logo adiante, no prédio imediatamente vizinho, um homem forte, aparentando seus sessenta anos, corpulento, solitário, estando à frente do aparelho de televisão que possivelmente acabava de ligar, caiu de repente. Não foi uma queda por desequilíbrio, por tropeço ou ação traumática, foi uma queda pura e simples, sem motivo que se pudesse detectar do local onde ela estava. Caiu. O corpo ficou encoberto, abaixo da janela, e não soube o que verdadeiramente ocorreu. Ficou intrigada por um instante, mas o serviço de arrumação de seu apartamento chamou mais alto e continuou a montagem e disposição de tudo: mesa, cadeiras, sofá, quadros na parede, cozinha, área de serviço, varal móvel, cama, roupas no armário, tirar o pó das coisas, limpeza pesada. A dura faina diária, ininterrupta.

À noite, cansada, olhou novamente pela janela e viu que a televisão do vizinho estava ligada, embora ele não estivesse no sofá. Estava esgotada, com fome, precisava de um banho e o essencial de sua morada estava no lugar, embora muito ainda houvesse para os próximos dias. Improvisou um lanche com suco de laranja, ovos, queijo e pão francês, uma delícia para matar a fome. Satisfeita, abriu um vinho e bebeu duas taças para relaxar. Dormiu sentada, debruçada à mesa. Acordou de madrugada com o som de uma sirene de ambulância. Meio sem entender o que acontecia, entre acordada e dormindo, foi para o quarto, acomodou o corpo dolorido à cama e deu por si apenas com o sol da manhã e o vento passando pela janela. Mais um dia de trabalho e arrumação pela frente. O domingo deveria ser para descansar, não para sentir o corpo dolorido e ainda assim prosseguir no esforço.

Os dias passam sem que deles tenhamos exata noção. A rotina é benfazeja, mas a novidade é um desejo e o contentamento ocorre entre dois momentos, como a paz é interlúdio de guerras e o intervalo é a bênção dos professores nos corredores das faculdades. Quase duas semanas se passaram sem que o vizinho aparecesse ou se fizesse notar através da janela. Talvez tenha viajado de férias, pensou. Mas não foi bem assim. Em plena terça-feira, pouco antes de sair para lecionar na Praça da Liberdade, notou alguma movimentação, era o vizinho assistido por um enfermeiro, sendo carregado para o sofá. Isso a deixou preocupada: teria ele sofrido um infarto, um avc, uma convulsão que deixou sequelas? Nunca havia trocado um cumprimento com o vizinho, nem sabia seu nome, mas a situação a inquietou. Ainda assim, o dia passou e somente retornou para casa já à noite.

Resolveu cumprimentar seu infortunado vizinho, fazendo-o com um aceno de cabeça, no que foi correspondida tão logo ele compreendeu do que se tratava. Isso motivou certa empatia e foi necessário dar-lhe um nome, pois o conhecimento forma laços e o primeiro passo é exatamente saber ou outorgar nome. Nominar é poder definidor de existência e de essência, outorgado por Deus a Adão e transmitido à humanidade descendente desde então. Se um nome não foi comunicado, um nome daria ao vizinho: Hermeto. Hermeto era homenagem e símbolo, um contraste com a realidade do multi-instrumentista e um reconhecimento ao mistério da vida daquele homem, cujo passado lhe era estranho e cujo futuro parecida severamente comprometido; existência musical em sua vida e um segredo a desvendar. Mas haveria de também notar alguma brasilidade, traduzindo essa brasilidade em sobrenome de grafia simultaneamente antiga e originária: seria ele um Goytacaz. Hermeto Goytacaz, estava definido.

Não se sentia autorizada a visitar Hermeto. Ele precisava de assistência constante para alimentar, trocar de roupa, realizar suas necessidades. A ideia de visita-lo parecia uma intromissão e poderia causar mais inibições do que satisfação. Preferiu a forma estabelecida: cumprimentos com acenos de cabeça, olhares significativos, imaginação do passado e de recuperação futura, uma troca em compromisso tácito. Sentiu-se como Malinowski divisando as Ilhas Trobriand, mas fazendo tudo em pensamento; sua antropologia resumia-se a Hermeto, não era verdadeira, funcionava como pretexto imaginativo.

Ocasionalmente, uma preocupação. Ele não aparecia na sala no horário habitual e imediatamente ela se punha a pensar no que teria acontecido: teria sido hospitalizado à noite?; um novo avc?; um infarto?; algo terrível ocorreu? Nada disso. Um atraso do enfermeiro ou do fisioterapeuta, alguma situação de menor importância, um sono mais prolongado. Ele estava bem e sabia disso logo que aparecia na sala e se cumprimentavam. O dia podia prosseguir sem tormentos ou aflições. Era o que importava. Acostumou-se com a rotina de dedicação à distância, algo entre materno e fraterno, mas que não era bem uma coisa e nem outra, de estar bem se ele estivesse bem, a cordialidade de um sorriso e a retribuição com um discreto aceno. Uma espécie de amor surgia. Não era amor carnal, não havia desejo, era um amor por empatia e compreensão, por aceitação da finitude que a todos nós acomete.

O divórcio, a vida adulta dos filhos, que já com ela não moravam, a relativa solidão de seu apartamento, os poucos amigos com que se encontrava no Cabernet Butequim ou no Bar Gilda, no Belô, no Café com Letras, na Baiana do Acarajé, no Redentor, no Moema Bar e Cozinha, no espaço gastronômico Da Villa e em outros lugares mais, as aulas na faculdade, os livros de filosofia, sociologia, antropologia, história, linguística, poesia, romances, contos e crônicas, crítica literária, tudo moldava quem era. Ela, em algum momento indefinido, passou a acreditar que, de alguma forma, Hermeto sabia de sua vida e a aceitava como era; julgava-se bonita em seu modo de ser, de se apresentar, de sorrir e no gestual; julgava-se bonita de corpo e de rosto, ciente de que formava um conjunto interessante para convites que não recebia de quem queria. Talvez por isso o interesse por Hermeto Goytacaz tenha surgido e confortado sua alma.

Os meses passando e estava bem afeiçoada ao vizinho. Passou a enxergar-se nos olhos imaginários dele, indagando-se quem era, que mulher era Isabel Coelho, como se visse a si mesma de fora, como um objeto de análise e consideração. E veio a noite de um inesperado aquecimento, um sentimento que não desperta simplesmente ao vinho, mas que faz valer a pena cada momento de estreitamento sob as cobertas no apartamento do André Delage, o professor francês de literatura comparada da Faculdade de Letras que ela tanto admirava. Mas o amanhecer não foi tão bom, foi quase indiferente, estranhamente distante, pouco comunicativo. Ou seria ela que, dando-se conta de que não veria Hermeto naquele início de dia, afligiu-se com o que poderia a ele ocorrer na sua ausência? Imaginou o vizinho procurando pela janela lateral da sala de estar e não encontrando sua companheira de cumprimentos e de acenos. O que ele pensaria? Julgaria ter sido trocado por alguém sério ou por uma aventura de momento, desimportante, um exercício de amor carnal e desamor espiritual? Ele aceitaria novamente que o cumprimentasse nas próximas manhãs? Deu-se conta de que se sentia envergonhada e imaginava desculpas que poderia dar à janela. Seria convincente? Tudo chocava.

Deu-se conta de que o sol mal despontava atrás da cortina e que André Delage ainda dormia. Entendeu que estava envolvida por Hermeto e por uma espécie de mística que criou para si; suas emoções não se submetiam aos comandos da intelectualizada razão. Agitou-se. Sentiu a pressão do momento, como há muito tempo não sentia, como desde a defesa de tese no doutorado parecia ser impossível sentir. Levantou da cama com cuidado, vestiu suas roupas, olhou quase chorando para seu companheiro de uma noite, que o remorso fazia questionar, despediu-se silenciosamente e saiu com lágrimas correndo pelo rosto.

Caminhou meio desorientada por quase uma hora, até chegar ao seu apartamento. Hesitou em abrir a porta. Havia um sentimento de culpa, uma indefinível culpa que causava soluços. A noite foi ótima, porém efêmera como a vida de uma borboleta que tivesse como expectativa apenas o brilho de, por única vez, contemplar o luar e morrer. Havia nisso uma felicidade triste de cumprir o destino, atender a natureza, ciente de que nunca mais haveria de acontecer. Dúvidas, dúvidas, dúvidas! Que momento para se sentir assim! A chave encontrando a fechadura e sua mão não girava a maçaneta. Receava entrar em casa e decepcionar a si mesma, como se sua consciência aguardasse sua chegada, como se sua consciência fosse sua mãe ou seu pai, como se lá estivesse Hermeto Goytacaz, interrogativo, nada dizendo, porém, com um olhar, sacrificando o nome que Isabel, de hebraica Izebel, tinha por significado.

Relutante, entrou no apartamento e, imediatamente, olhou pela janela lateral. As luzes do apartamento de Hermeto estavam todas acesas, mas nem ele nem o enfermeiro cuidador estavam lá. Um sentimento ruim comprimiu seu peito, pois nunca havia testemunhado as luzes acesas naquela hora da manhã e os cômodos vazios. Angustiou-se. Um pressentimento, como não se recordava de haver vivido até aquela data, tomou conta. Deixou seu apartamento, a porta aberta, desceu pelo elevador e foi à portaria do prédio vizinho. Perguntou, com tensão na voz, ao porteiro o que poderia ter acontecido ao Hermeto Goytacaz, mas não havia nenhum morador com esse nome no prédio. Deu-se conta de que o nome havia sido dado por ela e que não sabia quem era, verdadeiramente, seu vizinho. Explicou ao porteiro que procurava pelo morador adoentado, residente do nono ou do décimo andar, que fazia fisioterapia e que tinha enfermeiros cuidadores todos os dias. O porteiro reconheceu tratar-se do Maurício Abelardo, engenheiro acidentado que morava sozinho e que não tinha parentes que por ali fossem conhecidos; informou-a de que ele havia morrido durante a noite, que o corpo foi removido para o IML e que não se sabia a quem dar a notícia.

Isabel, como se fosse um Narciso perdido pela fratura da própria imagem no espelho, voltou atormentada para seu apartamento. Desta vez, chorou como uma criança. Ao se recuperar, foi ao IML. Lá encontrou esposa e filhos do Maurício Abelardo, a família de que ele estava, de fato, separado. Um ambiente triste, mas não havia nenhuma tristeza nos olhares daquela família que já há alguns anos não existia. Conversavam sobre a partilha de bens enquanto aguardavam a liberação do corpo para cremação. O único sentimento verdadeiro naquele momento pareceu ser o seu, que nada queria, além de despedir-se daquele que, sem trocar uma palavra, tocou e transformou sua vida. Guardou Hermeto Goytacaz, seu ideal amado, espelho e reflexão, no lugar íntimo dos versos que a ele dedicou:

Quero que fiques em mim,

gravada em meu corpo tua imagem,

que eu seja de tua memória bailarina,

amor que a ti devoto como tatuagem.

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