Sempre guardei a capacidade de reservar,
de voar, absorver tudo de mal
e uma vida em aporia.
Sei que com isso me coloquei vulnerável
a todos que digam que passei meus dias em fuga,
que deixei a amada a descoberto de proximidade e companhia,
senão em momentos esparsos,
no intervalo de algum dia.
Sou o que dizem, pensam ou interpretam de mim,
que sempre fui reticente, retraído e dúbio,
como vaga, irrevelada e dúctil é minha história íntima.
Cada palavra que digo tem a incerteza semântica
de algum contexto nem sempre claro ou evidente,
o que é igualmente apropriado e ruim.
Sobra, ao final de todos os dias,
apenas a folha seca caída ao jardim,
um eterno outono dentro de mim.
A terra, essa bênção divina,
me acolhe em decomposição
e me transformo a cada mudança de estação,
embora a aparência seja invariável:
uma árvore que perdeu a casca
e toda cobertura verde nas pontas de seus galhos,
sem recuperação da exuberância dos tempos de infância.
Não há no que digo, agora estreme de dúvidas,
piedade, tristeza ou comiseração, apenas lucidez
de quem enxerga os anéis dos anos em proporção.
Sinto que está se avizinhando algo profundo e profano,
a negação do que pratiquei como ritual
e dever por tantos anos,
a melancólica conclusão dos erros
de uma vida inteira minimizando malefícios
e iludindo felicidade vã.
Sou bom e mau,
tudo é questão de momento, ângulo e percepção.
Que mensagem deixarei quando,
para enxergar meu cômodo de definitivo assento,
meus filhos inclinarem suas cabeças ao chão?