Compreender o Inconfidente

Compreender o Inconfidente, dentre os que foram inconfidentes ao final do século XVIII em Minas Gerais, exige compreensão de tempo, ideias, cultura e fatos. Não existe, no universo exclusivamente político, alguém cujo significado para a posteridade se faça apenas por si, porém, sempre atrelado a algum acontecimento, a alguma circunstância, a um momento histórico. Lançada fora de considerações de tempo e de espaço, uma personalidade pode implicar indagações extremamente diversificadas, perdidas e desfocadas, por não haver em seu favor uma notória festividade em comemoração, a despeito do que possa haver registrado. Uma personalidade encerra imprevisões e improbabilidades, tão extensas quanto pensar na infindável série de coincidências genéticas para que cada um de nós pudesse nascer. Dir-se-á que ser, estar no mundo de ideias e fatos para dele participar, como coadjuvante ou como protagonista, já é um paradoxo. Que dizer, então, do herói e do mártir, daqueles que, reconhecidos ou não pela posteridade, deram suas vidas por uma causa, uma ideia, para fazer Justiça?

É próprio do saber humano o erro de atribuir fatos reais a seres imaginários, fatos irreais a seres reais, reconhecer incertezas confiantes e desprezar verdades tímidas. Esse é o padrão de imperfeição comum à nossa espécie, frequentemente levada por intenções de terceiros que desconhece, pela irreflexão, pelo preconceito, absolutização do provisório, apego ao transitório. Não há, humanamente, entre pessoas comuns, quem seja ou possa ser considerado o puro em si, o desafetado de incoerência e inconstância, porém, há sempre a incidência de variáveis talvez desconhecidas e outras circunstâncias de defesa e ocultação indevidas. O representante do final de uma era não é menos respeitável, mas seus olhos podem ser percebidos por muitos ângulos, pois sua alma está exposta. Assim são heróis e mártires, dos quais tantos finalizaram com seu sacrifício um momento histórico para inaugurar o novo e permitir que se realize o horizonte no porvir.

Nem sempre o tempo da narrativa coincide com o melhor momento do leitor, como a intenção por detrás do fato pode não coincidir com a do relato. Há incógnitas a serem supridas e respondidas, como a geografia evoca a história e o espaço lembra o tempo em aproximações imperfeitas e desgaste de consciências no embate entre a história das massas submetidas diferenciando da história dos soberanos. Há o descontínuo entre uma metáfora da vida e outra da morte, o que não se repete quando relegamos um pensar estanque para abraçar o complexo de realizações e de frustrações implicado a cada instante. Um deslocamento do eixo de locução, do erudito ao popular, da aceitação à negação, do reconhecimento ao desprezo, é corrente em narrativas que beneficiam, de algum modo, quem se aventura em construir o insustentável ou negar o evidente, destruir fatos e deportar protagonistas.

O berço de uma política seletiva por conveniência é a desordenação do saber, a ordenação da decadência, o furor das ideias do que pode ou não pode ser. No entanto, a morte do nome consagrado ao ato heroico inusitado não empalidece suas ideias e convicções, porém pode eternizá-las para muito além das circunstâncias de momento. Mais do que ao tempo dos fatos e respectivas interpretações, frequentemente tortuosas, o esforço intelectual a serviço de uma concepção de política do Estado impõe palavras a quem não as teve, esquecimento a quem deveria ser lembrado, ternura à traição e à tortura, esquecimento e desventura.

Histórias exemplares incluem o que foi excluído, porque povo fala por símbolos, muito além do que as palavras aparentemente limitam. O grande homem, herói ou mártir, fala mais profundamente em sua morte, mesmo quando amaldiçoado, lançando à posteridade indagações fundamentais: qual é a verdade histórica?; a do tempo da narrativa?; a do tempo do discurso do historiador? Nem sempre a coincidência entre fato e narrativa aparece no discurso do historiador, especialmente quanto disposto à composição da conveniência ideológica de seu financiador, porque o intelectual a serviço é quase um escravo, eterno devedor. É assim que adquire sentido a advertência de que por traz do amor existe uma traição, já que o intelectual de favor ou remuneração com facilidade deturpa a história. Se as emoções são verdadeiras, os discursos nem sempre; há tanto de mito poético e político.

O inferno é a ignorância, sempre cumulativa, não saber da vida, não saber a palavra, não saber a morte que fala e diz eloquentemente o homem. O mediterrâneo brasileiro, feito de montanhas e vales, era o sertão mineiro do século XVIII, desbravando terras auríferas, procurando pedras, margeando o rio São Francisco, e contava muitos casos críveis de eventos inaceitáveis. Escritor e leitor não são imparciais, pois levam consigo sua cultura, sua religião, suas intenções e todos os significados da palavra, mas não devem mentir nem falsear, muito há por minerar, extraindo das entranhas dessas terras suas verdades.

Não vivíamos uma República da virtude, nem poderíamos. Era a Colônia, a terra dos refugados, dos párias, dos escravos, dos submetidos, dos explorados que, em 1746, viram nascer na Fazenda do Pombal, atual Município de Ritápolis, o filho de um português, Domingos da Silva Santos, e de uma mulher destas terras, Antônia da Encarnação Xavier. Era o início da biografia de Joaquim José da Silva Xavier, eternizado como Tiradentes, designação correspondente ao ofício aprendido com seu padrinho, Sebastião Ferreira Leite, por quem foi criado a partir, provavelmente, de seus doze anos. Cresceu no ambiente de decadência da mineração, dos impostos altos e da impossibilidade material de pagar o que a Coroa pretendia, sem oferecer em troca nenhum serviço digno, apenas a discriminação para preenchimento dos cargos relevantes e do comércio, posições reservadas a portugueses somente. A carga tributária não se resumia ao quinto cobrado da produção suposta de ouro, mas chegava a compor mais de 90% do preço final de produtos destinados a Minas Gerais, o que era insuportável.

O sucesso da Independência Americana e obras iluministas animavam espíritos coloniais, especialmente aqueles que eram levados para estudar na Europa, de modo que não era de espantar o surgimento de movimentos emancipacionistas e de reconhecimento de nacionalidade distinta da portuguesa aos nascidos em território brasileiro. As francas injustiças com os coloniais acirravam ânimos, pois eram excluídos das benesses da Corte que sustentavam com incidência de carga tributária excessiva. A própria discriminação dos aqui nascidos gerava sentimento de diferenciação que, mais cedo ou mais tarde, haveria de emergir sob forma de pretensões nacionais e de implantação de uma república onde fossem verdades as lições de Rousseau e da Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, dentre outras.

Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, não recebendo instrução formal ou sofisticada, sabia ler e escrever, inclusive em francês; não tendo vivido na Europa, era o espírito capaz de empolgar pessoas e grupos com a transmissão de ideias de liberdade política, que se traduzem em independência, ideias de igualdade, que se traduzem em república, ideias de união, que se traduzem em nação. Não era homem de recolhimento em escritórios ou de elaborações sutis do pensamento, era homem de ação, de campo, de realização material dos ideais que sustentava. Era a condição de possibilidade para a diferenciação nacional, a independência e a república, ainda que a completude de sua pregação demorasse 33 anos, a partir da Inconfidência, para alcançar a independência, e cem anos para que fosse instaurada a República.

As grandes conquistas dos povos se fazem com muito sofrimento e tempo diferido. A impressão de que tudo acontece em momento determinado é errônea e suscita o indevido esquecimento de grandes talentos. Nos acontecimentos de 1789, até o desfecho trágico em 1792, encontram-se os valores fundantes do melhor que se encontra no alvorecer do século XXI, ainda que nem todos reconheçam. Atribuir a Joaquim José da Silva Xavier adjetivação de falastrão e inconsequente equivale a não somente contribuir para o inferno da ignorância, porém, é clara tentativa de solapar o que de melhor se fez em quase dois séculos e meio de história, é buscar a desagregação para, dividindo o povo, fazer dele presa mais dócil, é, enfim, negar o mito fundante, o essencial para nossa existência e independência no concerto das nações.

Em 1965, por meio da Lei nº4.867, de 9 de dezembro, foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, proclamado Patrono Cívico da Nação Brasileira. E não poderia ser diferente. Ao tempo de sua vida, tramar por liberdade, querer, igualdade e união era capitulado como crime de lesa-majestade; uma conjuração caracterizava o crime de inconfidência, cuja pena era não apenas a morte, como a incidência de maldição sobre a descendência. Era necessária fibra bastante incomum para arrostar tudo, enfrentar a possibilidade da mais cruel das penas e não negar, mesmo sob tortura, suas próprias ideias, como tantos fizeram para salvar suas vidas. Maria I, João VI, Pedro I e Pedro II não poderiam louvar aquele cujos princípios e ações contestavam, ao fim e ao cabo, a própria investidura imperial. O reconhecimento somente poderia advir com a implantação da república, a partir do 15 de novembro de 1889, com a decantação das impurezas dos homens no tempo e no espaço.

Talvez se possa sintetizar os pensamentos do mito fundante da nação brasileira e sua importância em algumas frases e indagações: a) lutamos por uma trindade, não apenas pela igualdade; b) o que fazemos pela cidadania de nossos filhos?; c) La Vandée não foi história solitária, infelizmente; d) o cadáver de um regime superado, mas ainda influente, deve ser sepultado com ritos especiais, para que se não levante da tumba; e) Stálin desenvolveu, mas não foi o primeiro a realizar, mudança na história oficial por apagamento de personalidades e suas realizações; f) ideologia e histeria política aliadas à ideia de alteração dos fatos e de seu sentido histórico são condutos de corrupção; g) demarcar o espaço de um mito, mesmo que o não tenha criado, é demonstrar poder político; h) boa morte ocorre com certeza da vida eterna, na companhia dos bons, em elevação a Deus; i) predições sem honra, prenúncio de honras ao mal.

Reconhecendo verdade em tudo o que até aqui eu disse, homenagens a Joaquim José da Silva Xavier, nesta casa da Justiça Eleitoral, faremos dando-lhe reconhecimento em cada ato, em cada decisão nutrida pela trindade que defendeu com a vida, forjando a Nação a cada momento e todas as gerações vindouras na conformidade dos ideais que em nossa mineira projetam luzes para a compreensão da grandeza que há na brasilidade!

2 comentários em “Compreender o Inconfidente”

  1. José Carlos Serufo

    Caro Dr. Bruno
    Boa leitura para a lucidez desta madrugada.
    Qual a tipificação do “crime” dos inconfidentes?
    Quem canta o Hino Nacional – ou ficar a Pátria Livre…- pode acabar “Inconfidente moderno”?
    Parabéns

  2. Bom dia, Serufo.

    Crime de mera cogitação, sem ato executório algum, foi praticado pelos inconfidentes mineiros. O conhecimento dos fatos, para repressão, não careceu demonstração, foi “ao pé do ouvido”, uma delação em forma do que hoje se diz ser “narrativa”, uma forma política para fofoca. Mas a cogitação já era uma ameaça…

    O Hino da Independência, feito para a “Brava gente brasileira” exeorcizar “temor servil”, concluindo pela “pátria livre” e disposição de “morrer pelo Brasil” é heróico e belo, soando quase como subversivo (para utilizar vocábulo desgastado em décadas passadas). Dá no que pensar.

    Forte abraço

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