Poderia ser apelido, mas era nome. José Francisco Tolentino Pereira Pessoa, Chico Pessoa, não era de Lençóis do Rio Pardo, mas de Riacho do Meio, cidadezinha pacata e muito distante, onde seus pais uniram duas linhagens de origens tradicionais fortes na região, de esgalhamentos decadentes e reflexos ostentatórios. Cristãos novos, misturaram sangues, em histórias de falsa genealogia e aventuras de ancestrais imaginados, que teriam sua sorte em travessias terrestres, de Portugal à Itália, justiçando e sendo injustiçados; como certo animal da fauna lusitana, mudavam de cores, línguas e sotaques, na tentativa de camuflar suas origens. Adotavam, já sem consciência do significado, rituais criptojudaicos, que não diziam a ninguém por força de tradição perdida, da época da grande conversão ao cristianismo, nos finais do século XV, no Porto. Um engodo de proporções fantásticas gerou adaptações igualmente fantásticas; estratégias de sobrevivência.
Mas naqueles sertões, de ermos afastados e sofridos, onde quem mandava era uma mulher quartona, de passado desconhecido e rigores temidos, com a força recente dos irmãos Mendes, a vetustez da cristandade não era levada em conta. A criatividade de expedientes era a regra, não a exceção, naqueles tempos. Terras, gado, influência e poder formavam uma espécie de quadrívio a ser aprendido e percorrido, com extremada cautela, por todos que pretendessem ou ousassem ter por destino mais que uma cova rasa no cemitério dos gentios. Houve uma história, inúmeras derivações, especulações e lendas, todas apontando, e nenhuma provando, que a viúva casta, beneficiária direta de uma sucessão vertiginosa de fatos trágicos, teria construído seu poder de senhora dos destinos em uma trama grotesca de insinuações, sedução, violência e muito derramamento de sangue. Na dúvida ou, pior, na certeza, a prudência recomendava não desafiar.
A vida de negócios obriga conhecimentos e mesuras, saber a exata distância entre a franqueza e a ofensa, a oferta honesta e o proveito escorchante. O nome, o de batismo como o angariado nas praças, nessas condições, vale mais que a palavra escrita, como a fama antecipa a chegada. Comprando e vendendo gado, alguma vez também terras, para quem o contratasse, Chico Pessoa, aos poucos, distanciou-se um tanto, não demais, de sua terra natal, tomando rumos inesperados para o comum dos homens de sua família. Uma época apertada, de sol forte e escassa chuva, com rios secando para correr debaixo das areias do leito, provoca migrações involuntárias, o aparecimento de situações limites nas famílias; o consumo de mandioca brava, como aconteceu também no Quinze, abreviava terrível e dolorosamente a caminhada, deixando menos rastros na sequência e um montículo à beira do caminho.
O suicídio de Getúlio, a eleição de Juscelino, a tentativa de impedimento da posse, a ação do General Lott e a deposição do golpista Carlos Luz tumultuaram a vida brasileira e tornaram incertas as relações de força em vastas regiões, mesmo em Riacho do Meio. A troca de mando se faz nesses lugares sem cerimônia, mas com ampla divulgação e velório; o féretro, sobre a carroceria de camionete e devidamente exposto para admiração pública, lentamente passa pelas poucas ruas, solenemente; a subida do cemitério é lastimosa, poeirenta, acompanhada do choro prateado das carpideiras; morreu o líder Eutanásio Brandão e seu último ato político foi mimético, embora sua carta não tenha sido inflamada e inspirada para ser lembrada ou prestigiar eventos na posteridade. Mortes podem ser políticas bem como terrenais, do cerne de poder e da carne; aconteceram ambas, simultaneamente, pela força penetrante do momento.
Culpado ou não, familiar, apadrinhado ou de alguma forma ligado ao titular deposto do poder local é obrigado a arcar com o peso moral de sua situação, que pode tornar-se insuportável. Riscos são constantes; em época de abandono, podem ser mais que desafiantes e decisões devem ser tomadas rapidamente. Para uma família acostumada com seu lugar, perder na ordem política significa bem mais que restrições cotidianas ou passageiras, pode significar a eliminação de tudo quanto obtido por esforços transgeracionais. Assim aconteceu. Mudar repentinamente, disfarçado e por caminhos inesperados, foi a solução para autopreservação, levando consigo, além da roupa, seus conhecimentos e modos; apesar de já formado para as artes de uma vida simples, deixou muito para não perder a totalidade, embora tão pouco tenha sobrado. Transpondo chapadas, montanhas, rios e vales, levado pelos ventos ao derredor, no que as forças da juventude auxiliavam, teve pouso temporário em algumas cidades e distritos, até que chegou a Lençóis do Rio Pardo já com alguma reputação e testado por situações de risco e honra.
À chegada ao destino emocional de sua vida, onde seria considerado conterrâneo respeitado, Chico Pessoa foi surpreendido por fatos que constituíram parte relevante da história local. Antônia, renomada por ser inalcançável e casta, havia consolidado seu nome como chefe política e senhora dos rumos das instituições e dos corpos de homens e mulheres, tal como fazia com seu próprio gado. Mulher forte, determinada, não tinha paciência ou tolerância com falta de empenho, deslealdade, vício de caráter; exigia tanto quanto retribuía, sem, no entanto, se dar ou revelar, para que seu passado permanecesse protegido e não houvesse nunca de retomar os primeiros passos, que mais fortemente conduziriam ao drama que à fortuna. Pulso como entre homens não se encontra habitualmente, saber mandar e fazer cumprir eram suas marcas na realidade, no imaginário e nas pessoas.
Houve um infortúnio que, para um recém chegado, exigiria a mesma sensibilidade revelada nas praças para identificar bons compradores de suas histórias, se não quisesse sucumbir ao primeiro momento. Mariozan Ribeiro morreu, vítima de único disparo de pistola, e o novato estava presente no exato instante, servindo de testemunha para o mais rumoroso processo da história forense local, que dividiu opiniões e contrapôs Padre Mauro Amaro e o Dr. Ambrósio Mediolano, juiz de escassa bagagem e sem ambições carreiristas. Era tarde, quase noite, e os amigos reuniram-se na casa de João Afonso que, orgulhoso, mostrava sua nova aquisição: uma pistola 765. Querendo mostrar perícia que não tinha, retirou o pente e deixou uma bala na agulha sem o saber. Carne assada, mandioca na manteiga, cerveja e uma cachacinha para celebrar, enquanto a arma passava de mão em mão. Adeodato Celidônio, não afeito às coisas de armas, triscou no gatilho e a bala atingiu Mariozan direto no coração. Não havia o que fazer, senão prantear o morto e beber à sua memória.
A família do defunto queria vingança e a custo foi contida, confiando na serenidade do juiz, que havia de levar o caso a júri, onde tudo aclarado restaria. A sessão corria tensa e as provas eram dúbias e pouco convincentes. João Afonso e Adeodato Celidônio, com seu grupo, forçando o quanto podiam pela absolvição. Tudo encaminhava para a insegurança, que poderia redundar em desastre e até em matança, pois coisas de sangue com sangue se resolvem. Chegou o momento de Chico Pessoa, para bem como para mal. Um depoimento firme e consistente permitiu a condenação dos culpados, mas em condição muito inferior à pretensão dos Ribeiro, o que os deixou com profundo sentimento de mais uma derrota; aos Mendes, embora afetasse o julgamento, não restou qualquer ressentimento, o extravasamento de recalques dos Ribeiro tudo compensou.
Bom forasteiro não afronta os poderes de fato estabelecidos onde chega; quando possível, alia-se. Não mentiu em juízo, disse o que sabia, embora haja várias formas de dizer o que se viu, acrescentar percepções, livrar possível participação pessoal e formar versão unificadora, principalmente quando se tem a sorte de ser a última testemunha e estar a par das parcialidades do que todos disseram nos depoimentos precedentes. Nada inventou, embora possa ter deduzido. Depoimento é ocasião de dizer a verdade ou de mentir; ser verdadeiro afirmando que mente; mentir que se diz a verdade; mentir afirmando que se mente; depor, sobretudo, é criar a possibilidade do surgimento de uma verdade social. A turbidez das águas se dissipa, e tudo parece límpido, se há credibilidade e firmeza no discurso, ainda que nem tudo esteja esclarecido à consciência de quem fala. Melhor recompensa não pode receber o espírito em dúvida, que flutua entre possibilidades de naufrágio, que ser acreditado, indubitado, e com isso sentir uma espécie de alívio ancestral.
Sábado, dia de rotina, caminhar até o barbeiro, acertar o bigode e, a cada três semanas, cortar o cabelo, lembrar dos tempos em que conheceu Maria Clotilde, a Didi, com quem se casou, e do quanto a sorte lhe concedeu em inspiração para ser respeitado naquelas terras. O tempo passou e andava de cabeça erguida, graças ao bom Deus. Guardava para si as dificuldades e lembrava-se do quanto apreciou tantas mulheres, sem deixar de amar, e ser fiel a seu modo, a Didi. Amar verdadeiramente era seu modo de ser fiel, embora fosse incapaz de dedicar-se exclusivamente à sua amada. Viveu, até o fim, paixões mais ou menos desconhecidas, mas sua honestidade com as outras mulheres poupou viúva e filhos de encontros inamistosos. Morreu tantas vezes quantas foram necessárias, para tristeza das que se julgavam amadas, nos seus distritos e vilas, quando, para Chico Pessoa, eram a feminina expressão de arrebatadoras paixões que se esgotavam no retorno a Lençóis do Rio Pardo. A idade chegou e esses tempos eram só lembrança engastada na fama por aventuras inconfessadas.
Em seu quarto, durante cochilo solitário após o almoço, a derradeira morte entrou silenciosa, mas não moveu a ceifadeira com facilidade, sentiu necessidade que em tempo algum havia desafiado seu peito tão acostumado a ser acusada de causadora de infaustos. Olhou com admiração aquele cuja existência haveria de encerrar. Nada de diferente, se ali não estivesse uma biografia singular, de feitos que há muito não se via; nenhum portento, mas de saber que a safra da vida é para ser colhida após maturada, não abocanhada de qualquer jeito. Indagou a si mesma se o sofrimento coarctado àquelas mulheres já ceifadas seria verdadeiro ou incongruente. E ela, que de curiosa nada tinha, flagrou-se em dúvida inexistencial. Hesitou.
Achegou-se à cama, olhou mais próximo Afeiçoou-se a algo que não era o frio imperturbável de seu habitual. Parecia derreter, tremendo, quase incontida. Deitou-se no lugar toda noite a Didi reservado e o envolveu. Ele sorriu inconsciente. Ela, pela primeira vez, sentiu que estava embriagada dele como de licor. Tremeu, arrepiou radiante. Foi embora consagrada. O corpo, na cama, esfriou sorridente.