Biblioteca dos livros perdidos

Amaro Fagundes. Desde criança, ainda na alfabetização do curso primário, sempre ouviu mesma ladainha desafetuosa: Amaro Fagundes era nome de rua, personagem de literatura, orador, desembargador, mas não era nome de menino ou de gente comum; de idêntica origem de tantos que não conhecem bem seus antepassados, que não sabem o nome do avô ou do bisavô, que desconhecem as origens familiares. Não haveria, certamente, nobreza ou fidalguia na ascendência. Mas uma sociedade cambiante, de insucessos revertidos, permitia à massa dos desolados, que contam histórias curtas, sem brasão ou distinção pública, pretender outros caminhos que não os da mera continuidade e repetição não identitária dos infaustos genealógicos desconhecidos.

Bibliotecário. Vocação precoce de admirador e leitor voraz. Desde que ouviu dizer da antiga Biblioteca de Alexandria e sua gradual extinção, em incêndios parciais, de controversas e, por vezes, apaixonadas motivações, ao longo dos séculos, até a completa perda, no ano de 642, sentiu-se irremediavelmente atraído pelo ofício de Calímaco e Eratóstenes. Desde então, lê incansavelmente, buscando reter na memória tudo quanto indispensável a manter incólume o acervo acumulado entre torres de poeira nos diversos cômodos da casa.

Tal qual ocorria com a biblioteca da Abadia de Melk, a casa de Amaro Fagundes repartia-se, ampliando-se como em círculos concêntricos, a partir de sua inabalável fé nas virtudes da Sabedoria, Justiça, Coragem e Moderação, seguidas das quatro faculdades: Teologia, Filosofia, Direito e Medicina. Crescia a casa, com o acervo, até perder-se nos mais diversos campos do conhecimento, jamais pensados por quaisquer dos seus incógnitos avoengos.

Não sabia, mas reestilizava, em uma vida social escassa, estabelecida no mínimo necessário a evitar que uma rusticidade se apropriasse do espírito, caminho certo para o despregamento da realidade, experiência avolecida de tantas gerações antecedentes. Da mesma sorte, porém por razões mais próximas ao seu modo de vida incerto e idiossincrático, povoando gavetas de medicamentos e complexos vitamínicos, subsistia seu corpo com o mínimo necessário à mantença, relatando a face inevitável anemia. Essa mistura de solidão e falta de ânimo à fartura, com disposição incomum a leituras e registros de ideias e impressões, era atributiva de expressão lúgubre, como a confirmar a alma de quem se anuncia como cadáver adiado que, simbolicamente, procria. Nem escritor, nem poeta, apenas um modo de estar sozinho. Pessoa.

De longas tardes e noites, sem o apuro do sol matutino e desdenhando atividade que não fosse em clausura, vivia, esquálido, a preocupação de nada esquecer, sob a tormenta do pouco saber. Acicatava-lhe a consciência imaginar que, sem seu esforço e dedicação, tantos textos e obras de importância singular, obtidas e anotadas, de cuja existência sabia-se por referências e mitos, pudessem restar ao olvido e, ao termo das piores consequências, definitivamente perdidas, restando ao oblívio, sem alguém que, mesmo de memória as regate, desconhecido de todos o seu paradeiro, ficassem esses exemplos de história e literatura definitivamente perdidos, sem alguém que soubesse de sua desaparição.

Essa a sua inspiração, seu motivo de viver, resgatar para o indeterminado porvir aquilo que a maioria desconhece e já nem crê. Bibliotecas da antiguidade, da Idade Média e outras diversas, desaparecidas ou danificadas seriamente em períodos mais recentes, como a Nazionale Universitaria, em Torino, a Library of the Catholic University, em Louvain, a Imperial University Library, em Tokio, a Nacional da Nicarágua, a da Univesitat de Valencia, da National University of Tsing Hua, em Beijing, definitivamente recuperadas no santuário particular do conhecimento, montado no seu último e definitivo endereço, que não dizia a ninguém: Rua Dr. Pena, s/n, em Barbacena. 

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