Basileu Magalhães

Crítica de teatro e cinema, a ser exercida com habilidade, habitualidade, profissionalmente, é campo de atividade para poucos. Não comporta todo jornal uma coluna, nem toda cidade alguém que a tanto se dedique. É necessário atingir certo nível cultural, haver espaços e equipamentos adequados, frequentemente públicos, que a população se habitue aos prazeres do intelecto, e que a renda se distribua de forma a propiciar plateias. Se não houver espetáculos de qualidade, a população, culturalmente inane, reforçará estratégias de sobrevivência e declinará das mais elevadas satisfações. Assim divagava, em agosto de 2014.

Um crítico não se faz com textos somente. Começa por ter origem; a obscuridade não serve; a Itália, de Luchino Visconti, é a origem de Florinda Bolkan, como Uruburetama é a cidade natal de Florinda Soares Bulcão. Certo complexo, jamais confessado, fazia com que Brasilino Pereira da Silva não se agradasse de anunciar sua naturalidade lençoense, embora a cidade já tivesse revelado personalidades do Estado e da República. Entretanto, a Lençóis do Rio Pardo de sua infância era de ingrata lembrança; a escassez de comida, o excesso de homens frequentando a casa, a passividade paterna, os jogos cruéis da infância, as dúvidas desconcertantes do início de juventude, um caleidoscópio enganoso, que doía na carne, o faziam silenciar sobre seu passado, do nascimento à adolescência.

Ficaram registros de uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro e por São Paulo, com direito a internações curtas no Serviço de Assistência ao Menor, logo antes dos acontecimentos de 1964. O dia 31 de março ganhou significado de sofrimento e libertação em sua história de jovem à busca de identidade e dos créditos da maioridade. Confuso e confundido, quando em local impróprio para os tempos de janeiro de 1969, foi preso, torturado e apresentado a algumas pessoas de extraordinária influência para os anos vindouros. Intelectuais e gente do meio artístico foram seus convivas de cárcere, companheiros de fuga e arquitetos do exílio; amizades para todo o resto da vida. Estudou engenharia mecânica na Suécia. Teve várias ocupações, algumas bastante singelas. Assistiu e leu Brecht, Pirandello, Goethe, Molière, Tchekhov, Ibsen, Ionesco, Fellini, Bergman, Truffaut, Buñuel, Sartre, Hayek, Hobsbawn, Lévi-Strauss, Foucault e tantos outros. Seu intelecto prático impediu conhecimento profundo, mas a superfície lhe era favorável; sempre foi possível, em uma lauda e meia ou duas, iludir com falsa erudição.

Em 1979, Basileu Magalhães, retornou ao Brasil, estagiou em praias cariocas e aportou em Minas carregando os originais de “Tramas de Amor e Ódio ao Carrasco”, seu livro inaugural, que teve a sorte de publicar e lançar três semanas antes do atentado ao Riocentro. Publicidade instantânea, gratuita e garantidora de desconcertante sucesso para um livro apenas comum. Um episódio desfocado valeu aura de vidência ao autor e fama de premonição à obra. Da rejeição ao best seller, da franciscana condição às televisões, jornais e revistas, foram passos curtos e ligeiros. Notoriedade, com alguma maturidade, presta-se a múltiplas oportunidades, que não deixou escapar.

O Brasil pós 1964 recheou de possibilidades biografias que passariam desapercebidas em tempos de normalidade. Uma imensa ilha de chances escancarava-se a quem se dispusesse arriscar, com senso das reviravoltas históricas e planejamento de longo prazo. Os registros como “menor delinquente” não auxiliariam, deles era necessário livrar-se, construir nova e proveitosa identidade. Um procedimento simples, admitido pela legislação, permitiu, com declaração de próprio punho e o depoimento de duas testemunhas, o registro tardio de nascimento de Basileu Magalhães, natural da imperial cidade de Petrópolis, e autorizou, quando oportuno, o óbito de Brasilino Pereira da Silva. O novo nome foi escolhido criteriosamente, para fantasiar tradição de realeza e ancestralidade cripto-judaica antiquíssima em Portugal. Se a verdade não é, imperativamente, o que se vê, nela se pode acreditar, desde que se repita uma versão crível. Brasilino esteve no S.A.M., Basileu no D.O.I.-C.O.D.I.; Brasilino morreu em 1970, vítima de afogamento, Basileu sobreviveu à prisão, em 1969, para contar sua versão da história.

As sucessivas edições de “Tramas de Amor e Ódio ao Carrasco” encobriram suas imperfeições e permitiram a venda de direitos. Época de franco trânsito por onde convinha, formando alianças e atraindo simpatias daqueles que criariam a nova ordem em pouco tempo. Um requinte, a benefício do porvir, foi escrever, decalcado no estilo de Sábato Magaldi, suas primeiras críticas para teatro. Não se tratava de reprodução pura e simples do mineiro ilustre que radicou em São Paulo; sutil apropriação, que não permitia acusação de plágio, tornava-os próximos e emprestava algo de sóbria e sólida cultura. De tudo havia proveito. Fez da crítica mais um veículo exploratório da capacidade de assimilação e integração ao ambiente.

Publicou, ainda, “Liberdade Reprimidas”, suposto ensaio, “Roteiro de Pasárgada”, poesia, “Séquito” e “Reflexões Pós-Traumáticas”, memórias, firmando-se em estilo de literatura repleta do jargão aprendido nos tempos em que ficou preso. O personagem que não era fez sucesso durante anos, sempre se amoldando a alguma nova característica imposta pelo mercado. Fingir não parecia difícil. A propriedade da representação o levou, mais tarde, com reputação e militância, tendo vivido décadas como palimpsesto, a assumir-se como pergaminho reescrito, em peles de secretariado e ministérios, sempre cercado de quem melhor pudesse orientá-lo e fornecer releases de fácil digestão para discursos improvisados.

O mundo das entidades culturais tem suas próprias estratégias. Sobressair significa conhecer pessoas, legislação, diretores, produtores e ter razoável entrosamento em instituições de fomento e financiamento. Conseguia bons patrocínios e retornos inseguros. Perseverava contra suas naturais inabilidades e colhia frutos de um pragmatismo que não exibia em planilhas. Sua derradeira aventura, quando já não mais se interessava pelas honrarias dos cargos de representação e de Estado, foi uma peça para teatro: “Imitação de Vargas”. Financiamento e patrocínios, prometidos e descumpridos, projetaram sua face risonha em pesadelos cotidianos. Quebrou pagando as contas da produção.

O crítico que se despe de sua condição expõe-se de forma diversa de seu hábito. As vicissitudes de toda produção foram experimentadas sem concessões. O que negou, em anos de sua coluna de jornal, por não abandonar o papel de simulacro, foi o que lhe faltou no julgamento invertido a que submetido, no momento em que se apresentou como autor. Fracasso inconteste, dinheiro perdido, dívidas acumuladas, cobranças, contas bancárias que alcançaram déficits impagáveis e o vislumbre sexagenário da impossibilidade de recuperação.

Impossível suportar, até o final, a temporada contratada. Recolheu-se ao apartamento alugado na rua Cláudio Manoel. Morava sozinho. Solteiro, não teve filhos. Nunca retornou a Lençóis do Rio Pardo. Escreveu uma carta de despedida para os amigos. Como ninguém soubesse de Brasilino Pereira da Silva, nome com que assinou, sua última mensagem foi tomada como uma depressiva ficção de despedida. À noite, os vizinhos escutaram um ruído típico. Era 24 de agosto. Foi encontrado no dia seguinte, com um tiro no peito. Sobraram as dívidas.

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