Bailarina

Bailava. Assim parecia ser feliz nos anos tenros de sua vida. Para si, para seus pais, irmãos, avós, tios e primos. E nos seus passos, ligeiros e precisos, não se enxergava, deslumbrada com um mundo que parecia existir para admirar. Preciosos, como eram os desejos e as esperanças que toda família sobre ela fazia repousar, seus movimentos eram bênçãos espargidas com alegria, na inconsciência de viver para ser adorada, sem ter visto sequer um reflexo em calmo espelho d’água.

Mas o tempo, esse inimigo da perfeição, que traga cada momento, depositando-o no passado e alterando a percepção de quem rememora, não se fez cúmplice. E aquela, cujo nome conduz felicidade, que não se olhava, percebeu que o corpo mudou. E lembrar do que foi, do que passou e viveu, ganhou significado, algo até então desapercebido.

Continuou a bailar, mas já com passos amplos, movimentos de maior alcance. Prestava atenção, buscava espelho, se enxergava, notava imperfeições que ninguém reparava. Os desejos mudaram, promessas surgiram, um constante peso sobre as esperanças familiares. Não era criança. A beleza dos atos infantis dando lugar ao sorriso adolescente, com a pureza dos lábios ainda intocados.

Um sentimento e um vazio, afirmação e negação em idêntico espaço, como se não coubessem em seu exasperado coração. O contraditório evolver das emoções de uma vida que já não quer ser esperança, mas realizar. A incerteza de continuar ou desviar, indicativos de perseverar ou recomeçar. Como recomeçar, sem as forças que a idade e a experiência não legaram? Como perseverar quem não enxerga a contra esquina? Arrojar-se, desprovida de certezas, é a licença que possui a juventude e que a autoestima afirma ser madura.

Novo começo, novo retorno, nova vida que deslumbra; será que compreende a imensidão à sua frente? Não enxerga a contra esquina, mas deduz.

Continua a luzir, mas não sabe quem capta suas ondas. Adulta, não se acomoda, nem se estima, apenas corre para não lembrar, para deixar signos e significados guardados com sua infância. Versos tristes de Florbela Espanca, de sonetos com que se identifica:

Quem me dera encontrar o verso puro,

O verso altivo e forte, estranho e duro,

Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

Tornar ao sentido da vida é enxergar-se em nova vida. Restituir aos seus o direito de contemplar e abençoar, não pelo que há de ser. Esquecer o que um dia foi promessa. E é Florbela quem novamente consola o coração feminino que sente e não diz, o sorriso que não trai o que a alma padece, o desejo que derrama em jarros:

Ó mulher! Como és fraca e como és forte!

Como sabes ser doce e desgraçada!

Como sabes fingir quando em teu peito

A tua alma se estorce amargurada!

 

Quantas morrem saudosas duma imagem

Adorada que amaram doidamente!

Quantas e quantas almas endoidecem

Enquanto a boca ri alegremente!

E libertar-se nos versos de um poema que aprendeu bailar. E bailando vai, a escrever com seu corpo outros versos de signo e significado que só quem conhece a chave de ler saberá entender.

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