Alberto talvez não fosse alguém tão admirado se não soubesse admirar Annette, sua esposa tardia, que conheceu já passada a juventude e estabilizada a maturidade, cuja serenidade queimou em fogo abrandado e lento por vinte e três anos. Não era particularmente bonita, porém intrigante e desenvolta, destemida e forte como necessário em tempos de discriminações, traições, delações, sumiços e destruição da individualidade por amor ao Estado. Coser pessoas para cozer espíritos, destruir para reconstruir, expectativas sinceras de gente honesta na burocracia da sofisticada maldade de que nem sabemos que somos capazes. A banalização do sofrimento pode anestesiar a consciência ritualizada sob auspícios do estrito cumprimento de ordens superiores, partidas de sabe-se lá de que mente sádica e fértil, estridente e febril. Um servidor preciosista não faria melhor do que ele fez em marcha nupcial breve, imprevisível, dramaturgia da vida e impensada em ficção.
Infância calada na atrocidade de ver o que ocorria aos que choravam. A sevícia do mundo, sensação que o perseguiu por toda a vida, ou por toda morte de que se fez sua vida. Depois da humilhação e do sofrimento extremo, há um momento de arrefecimento em que o pavor da carne exposta parece diluir no desequilíbrio tonto de um desfalecimento, como se o espírito se despregasse e olhasse o corpo inerte, uma espécie de vagar por cima da realidade crua. O que são os anos da infância senão preparação para escolhas nem sempre conscientes, para aprender o ofício de tapear e circunscrever interesses que colhem de surpresa os mais fracos, alimento ao ego dos que se fazem fortes e têm a sorte de não se deparar com o sucesso dos que lhe são superiores? Escolher vítimas e inimigos é arte a que muitos sucumbem.
A adolescência fez seu primeiro depositário de uma ira incontida, que ainda aprenderia a canalizar produtivamente. A primeira vez é experimentação e aprendizado para uma técnica que se desenvolverá e refinará. Repetição do que testemunhou, ainda não tinha sua assinatura, apenas violência explosiva, liberação de energias mal acumuladas, susto e esperança. Vida institucionalizada, com o pai desaparecido desde antes de seu nascimento e a mãe perdida em afazeres para homens, alguns desconhecidos, que transitavam pela casa; a maioria não retornava. Cheiro de álcool, cigarros e cocaína disponível com mais facilidade que o alimento. Repressão, agitação nas ruas, Juscelino talvez não tomasse posse, ou muito se fazia para que não alcançasse a cadeira presidencial, e o povo alienado, aguardando um salvador após a morte de Getúlio. O suicídio foi ato de covardia ou coragem? Que papel reconhecer a Filinto Müller no cenário político nacional? Tudo era desconforme, sem coerência e ideologia não era sua propensão natural.
O Cemitério do Bonfim, o mais antigo da capital mineira, povoava cenários somente controlados com frieza e pleno domínio das emoções. Os estreitos caminhos entre sepulturas e mausoléus, onde espíritos familiares repousam a derradeira jornada, são sugestivos e aumentam a eficácia de pretensões que resvalam por noites e horários silenciosos. Lúgubre lar dos sentimentos pesarosos. Aprendeu a não se importar com o pensamento alheio, que o destino comum dos homens não distingue nem faz escolhas; o homem é um ser nascido para sofrer e morrer, o quanto mais abreviadamente sofrer e morrer maior impacto provoca na culpa dos que ficam, sobreviventes arrependidos do heroísmo não cumprido. Destino não é obra do acaso, é decisão dos fortes e leviandade dos fracos.
Um auto de fé, como o de Ricci, tem o efeito de pólvora acesa sobre almas das mais diversas confissões, entretanto, não é suficiente para descrever o horror de holocausto particular vivido nas entranhas de uma guerra. O zelo pelo detalhe, a obediência cega como a um dogma ou sacramento em meio tão profano, o desconcerto de não ter para onde ir, seja a vítima sob olhar da multidão ou o desespero de saber-se no lugar errado para testemunhar a violação de tudo quanto constitui sua pessoal escala de valores. Aplausos, gritos, frenesi impossível de conter, corpos agitados e ninguém sabe do que participa e o que significa na multitudinária manifestação de força ideológica de um dominador obtuso, porém metódico. Vidas são perdidas sob aplauso geral da assistência, enquanto dignitários sentam-se orgulhosos na curul que lhes é reservada solenemente e que os levará à barca do inferno, censura da grandeza falsária contra a qual Gil Vicente brandiu sua eloquente arma: o verbo. Não há honraria terrena que corrompa o barqueiro calmo que tem por missão transpor o rio do infortúnio em préstimo aos cuidados de Cérbero, que pelo seu esquecimento nas ruínas infernais pela eternidade acudirá.
Esgotava a imaginação em quadros e textos sincréticos que somente ele próprio entendia; com isso repudiava antigas expectativas e afastava até mesmo quem dele se condoía. Óleos sobre tela, manuscritos, ensaios, anotações dispersas no quarto que alugava na casa da Ceiça Bernardes, tão bondosa quanto permitia o cristianismo prático com que satisfazia um universo invernal inconfesso, de infância dura demais para ser memória. Os inquilinos, tão pontuais quanto o desemprego estrutural anunciado por economistas sensíveis, encarnação edulcorada de Domingos de Gusmão, prestavam honras a sua senhoria pela tolerância que a eles dispensava, a mesma que os cátaros não obtiveram. Um dilacerado de sensações, com livros sobre a pequena mesa e a cama, caixas de remédios psicotrópicos sobre a prateleira e gavetas congestas de papéis, receitas antigas, arrependimentos, fastio dolente e nauseante.
Um golpe ou uma revolução, não importa como uma deposição se qualifique, é destruição e oportunidade. A desimportância do outro, acrescida de má interpretação de Heidegger, moldou personalidade e permitiu o aproveitamento de possibilidades que nem todos eram aptos a fruir. A descoberta da condição de cristão novo e o testemunho da Segunda Guerra abriram perspectivas maiores para as necessidades governamentais do final da década de 1960. O gosto pelo estudo dos fatos da Idade Média, do Santo Ofício e de certas artes, tornou-se experiência de sangue e vísceras, captação de declarações e informações desconexas, de tudo o que fosse necessário ou encomendado. Morrer não é o pior e sobreviver pode ser tedioso para um profissional magarefe.
Agora, passados tantos anos de clausura, cumpridos todos os dias judicialmente determinados, era um pouco estranho passear à larga, sem prestar atenção, em pleno domingo, até buscar distração pelo Parque do Acaba Mundo. Há certo encanto em perceber e não ser percebido, depois de tudo. A planície do parque contrastando com a brusquidão dos declives por que havia passado. Nada inevitável, a não ser o que de incompatível havia em esconder-se e perder a inspiração de sua vida, procurada mesmo após impossibilitada. O meado dos anos 1990 surpreendia, tudo parecia meio largado e incerto, bem diferente dos tempos em que agia à sombra do Estado.
Um canto, à sombra de uma árvore, era lugar aceitável para visitar o passado, cumprimentar cadáveres, reverenciar espectros, e procurar por uma consciência ainda não encontrada. O problema da consciência era irresolúvel, não conseguia sentir culpa por nada e para tudo havia a boa filosofia do ser-para-a-morte. O único medo que tinha estava recalcado na infância, de que, farsante, dizia a si mesmo não lembrar. Quanto ao mais, é a medida calculada do feito e do alcançado, por vezes invadida de algum sentimento ou indagação, nada que se possa entender como autêntico incômodo.
A primeira união, contágio fumegante a que não resistiu naquele meado de década e guerra fria, teria sido um engano? Uma noite de juventude e resignada afirmação, antes de saber quem realmente era. Após o amarfanhado ato, que revelou a inexperiência juvenil, o olhar quase compassivo daquela mulher, e seu tom de voz, causaram fúria. Mas ela sabia se defender, embora não fosse prostituta, apenas uma vizinha abandonada e que há muito não era frequentada, embora não tivesse chegado sequer aos trinta anos. A dor daquela noite foi o desemboque da primeira gravidez levada a termo e desaparecimento com um menino recém-nascido que ele pensava jamais tornar a ver. Era jovem demais para entender e ela sabia disso. A complacência daquela mulher, tão himenal quanto espiritual, abrigou conveniência e perturbação de efeito diferido; ele não estava formado para enxergar as possibilidades.
Iniciada a década de 1970, a segunda, fugaz e inimaginável, união. José Tomaz parecia um delicado homem, por completar seus vinte anos, de culinária vocação e amorosa dedicação; lembrava curiosamente aquela vizinha desaparecida, até na delicadeza da face, algo com que não haveria de se importar. Nada aparentava ser erro à época. Uma prisão, acusação de pertencer ao MR8, atividades literárias e em artes plásticas, tinha estofo e credibilidade para impor que não eram de caráter afrontoso, apenas fatos isolados dos quais se encarregava pessoalmente de afastar o amado e amante. A decepção de ser envolvido por desejar. Nunca mais o avistou, dele tendo apenas notícias vagas durante um ano, até a comunicação de sua morte, desnutrido, nos sertões de Goiás, em confronto armado, quando tentava angariar fundos para a causa revolucionária. Não reconheceu o corpo. Ele bem poderia ter fugido para alguma ilha para se adestrar melhor em infiltração e guerrilha. Ao fim e ao cabo, tudo parecia um drama decomposto em erros fundamentais, praticados pela mente inconstante da juventude e por sentimentos inapropriados de homem que já enxerga vida madura. José Tomaz era de arroubos violentos; teve anúncio de morte previsível, sua vida já havia sido uma agonia, mas a identificação do corpo nunca foi estabelecida.
Escreveu, em tom provinciano, alegorias do amante com que sonhou e que não correspondia à sífilis adquirida quando era absolutamente devotado àquele de que se convenceu ser o grande e verdadeiro amor de sua vida. Decepções acumuladas, choradas intensamente, como Rolando foi pranteado no campo de Roncevaux pelo pai que se apresentava como irmão de sua mãe. O sentimento da morte moral, antes da notícia da extinção corporal, o abateu como somente os mais tristes acontecimentos têm a aptidão de provocar. Imaginava, à época, que jamais se recuperaria. No entanto, como há um dia após o outro, mesmo entrado aos quarenta anos, e talvez porque experimentado pelos males das ondulações agudas, a possibilidade do reencontro de si não seria desprezada. Mergulhou na depressão dos parentes dos desaparecidos, dela fazendo seu próprio alimento, roteiro que incluía Uruguai, Argentina e Chile, em degustações tintas de dor, compensatórias, à busca do olvido definitivo. Tudo antes que o condor sobrevoasse os Andes. Abandonou, temporariamente, leitura, pintura e escrita; deixou o quarto na casa da Ceiça Bernardes, os amigos, colegas, companheiros de viagem de ônibus, futebol no Mineirão, cinema, teatro, livrarias, a feira da Praça da Liberdade, lugares conhecidos, a parte visível de Belo Horizonte.
A invisibilidade não é dom humano e retornar é uma necessidade. A cidade passava por transformações e ficava evidente, ao menos para observadores atentos, que o país gestava saídas que o movimento artístico instintivamente reproduzia, agindo no subconsciente de uma população ávida e descrente. Inconfidências não acontecem sem que o tempo esteja maduro; o que ocorre antes da hora são abortos da cidadania, que podem ser úteis se servirem de origem ou fertilizante. Em momentos assim, pessoas ganham importância estratégica para o universo concentrado das tensões prévias a toda explosão.
Alberto tracejou, com linhas partidas, retas e curvas, em ângulos múltiplos, contrastantes com fundo branco e gelo, em desproporções sutis, levemente embriagadas e que se deformam na lembrança, o primeiro retrato de Annette. Cabelos curtos, partidos ao meio, presos lateralmente, mas sem densidade para trançar, rosto anguloso e fino, de olhos bem abertos e redondos, sobrancelhas em arco, cílios escassos, nariz destacado e lábios crus cobrindo queixo que não chegava a ser quadrado. O rosto, assim, pouco definido e excessivamente traçado, bem assentava, mas o pescoço, grande e fino, subtraía forças presentes no tronco avantajado. Ao custo de incredulidade, encontraria aquele modelo de inesperada resiliência em um trecho conhecido entre as avenidas Bandeirantes e Agulhas Negras, quando a noite vagueava insone e transpunha os limites em que toda esperança deve ser deixada para trás.
Annette era constrangedoramente semelhante ao retrato riscado distraidamente, até mesmo na frieza aparente de quem sabe despertar convulsões e alterar as crenças e convicções permanentemente. Uma única noite transformaria absolutamente tantas vidas, de modo a pensar que jamais tornaria à calma apreciação do Anjo Azul, como havia sido por boa parte dos tempos de inocência oficial e nos relacionamentos fugazes que renderiam surpresas desesperadas. Noite lancinante, feita de pontas, gumes, risos, linhas cuidadosamente impressas nas costas e nas nádegas, gritos, espasmos, cores fúlgidas, medos, trocas involuntárias, ilusões, gozos artificiais. Nada ficou muito bem gravado em forma de lembrança, a não ser os meses até o julgamento e a impressão de que a vida havia se esvaído com Annette, um rosto para sempre; pinturas de sangue e jatos vitais nas paredes da cela e onde mais houvesse espaço poeticamente reservado à insânia dominada.
Liberdade, mesmo que tardia, e poder fazer tudo de novo, com gosto e gozo nos detalhes.
