Bruno Terra Dias
Discurso proferido em 2013, no IHGMG
Indagações fundamentais
Onde e quando nasce o mito? O que distancia o homem da lenda? Perguntas assim, e outras mais, surgem quando se perscruta a genialidade que apenas a alguns toca, a despeito de toda sorte de dificuldades com que possa ser contemplada uma vida. Antônio Francisco Lisboa, popularizado como o “Aleijadinho”, é desses personagens raros, na história do Brasil como na história universal. Suas realizações são de tal porte que é comum a desconfiança. Separar o homem do gênio, a obra do respectivo significado, o humano da idealização é tarefa nem sempre possível.
Quem foi Antônio Francisco Lisboa, que influências familiares sofreu, o que dizia o mundo circunstante à sua sensibilidade de arquiteto e escultor? Qual seu papel na memória coletiva do compósito da denominada mineiridade? Sua existência, por alguns até mesmo contestada, tem sentido na história, na filosofia ou na política?
Indo além, seria Antônio Francisco Lisboa somente um arquiteto e escultor, ou um intelectual refinado, cuja escrita, complexa e sofisticada, são concepções artísticas, filosóficas, políticas e religiosas, reveladas nas realizações amplas de projetos de capelas e igrejas, púlpitos, adros, altares, lavabos, oratórios, mesas, cadeiras, esculturas em madeira e pedra sabão, disposição dos elementos de devoção e comunicação? A linguagem, nesse caso, como Drummond ou Pessoa, revelaria um mundo de intensas emoções e cuidadosa elaboração, expondo tanto mais, quanto maior o cabedal de quem sabe ler o que versos, projetos e obras sintetizam.
Se, é bem verdade, alguns argumentam que a questão autoral, na Minas setecentista, e, mesmo, no primeiro quartel dos oitocentos, não descortinava aspectos da disciplina jurídica atual, a proposição de uma “leitura da obra”, com ressalvas específicas para o corpo de auxiliares, não nos daria a percepção de uma mensagem do gênio quasimodo do barroco mineiro?
Vida, política e economia
Antônio Francisco Lisboa, nascido em 1730 ou 1738, filho do arquiteto português Manoel Francisco Lisboa e da escrava Isabel, teria sido alforriado pelo pai, ainda na pia batismal. Veio à luz, portanto, sob o signo da infâmia da escravidão, na época bruta das aventuras por metais preciosos, início da sedentarização e formação de núcleos naquela que se transformou, no século XVIII, na maior capitania da Colônia, seja pelo critério da densidade demográfica, seja pelo número de cidades ou, ainda, pela circulação de riquezas. O início de sua vida, o aprendizado na oficina paterna, suas primeiras obras, tudo ocorreu no período do fausto, ápice da riqueza e momento da formação de uma intelectualidade qualificada, que rivalizava, se não superava, a Metrópole de além mar.
Formado o homem, o caminho para a maturidade seguiu de mãos dadas com o declínio da produção aurífera, com as apreensões derivadas do esgotamento das lavras de aluvião, a realização da derrama, o empobrecimento e endividamento dos mineradores e profissionais liberais instalados em Vila Rica.
O movimento da Inconfidência coincide com o homem maduro, já doente, progressivamente debilitado, que aos poucos perdia a funcionalidade das mãos e das pernas, substituídos por mecanismos de atrelamento de ferramentas e de proteção aos joelhos, até ser carregado por seus auxiliares. As Cartas Chilenas, denunciando os desmandos do governador-geral; as discussões secretas em casas de conjurados; a fraqueza moral e a traição infame do endividado e interesseiro Joaquim Silvério dos Reis; o processo, a morte de Cláudio Manoel da Costa, sob circunstâncias suspeitas, e a condenação dos inconfidentes à morte (pena executada somente em desfavor de Joaquim José da Silva Xavier), ao degredo e a outras sanções, tudo isso compôs um cenário do qual era partícipe privilegiado aquele que atendia pela alcunha de Aleijadinho.
A vida de Antônio Francisco Lisboa atravessou os reinados de desequilíbrio fiscal e administrativo, assim como caráter perdulário, de D. João V; pouca disposição e timidez de D. José I, cuja melhor decisão talvez tenha sido delegar a Pombal os cuidados com a administração pública lusitana, o que permitiu a recuperação da tragédia representada pelo terremoto que destruiu Lisboa, em 1755; de Maria I, conhecida como “a Louca”, cuja notória enfermidade fez o reino desembocar na regência do príncipe D. João, que enfrentou o encargo maior de ocupar lugar reservado ao seu irmão, José, que, se não morresse prematuramente, teria sido um rei devidamente preparado. A cada reinado mencionado, corresponderam vice-reis e juntas governativas, ocupados, respectivamente, por: Vasco Fernandes César de Meneses, conde de Sabugosa; André de Melo e Castro, conde das Galveias; Luis Pedro Peregrino de Carvalho e Ataíde, conde de Atouguia; José Botelho de Matos, Manoel Antônio da Cunha Souto Maior e Lourenço Monteiro; Marcos José Noronha e Brito, conde de Arcos; Antônio de Almeida Soares Portugal, marquês do Lavradio; Tomás Rubi de Barros Barreto, José de Carvalho Andrade Barros e Alvim; Antônio Alvares da Cunha, conde da Cunha; Antônio Rolim de Moura Tavares, conde de Azambuja; Luis de Almeida Portugal Soares de Alarcão d”Eça e Melo Silva Mascarenhas, marquês do Lavradio e conde de Avintes; Luis de Vasconcelos e Souza, 4º conde de Figueiró; José Luis de Castro, conde de Resende; Fernando José de Portugal e Castro, marquês de Aguiar; Marcos de Noronha Brito, conde de Arcos.
Nos seus 84 ou 76 anos de vida (conforme se acate, como ano de nascimento 1730, ou 1738), Antônio Francisco Lisboa viu todos, ou quase todos, os governantes da Capitania de Minas Gerais. Testemunhou, sendo natural de Vila Rica, trabalhando com o metal precioso que a Coroa portuguesa tanto cobiçava (a despeito de em nada se esforçar para melhorar a técnica de exploração), a cobrança do quinto, a sonegação, o desvio, a mão de obra escrava se acabando em até 10 anos nos trabalhos de garimpo, as exigências de recolhimento impositivo mínimo de 100 arrobas anuais em prol da Metrópole, a corrupção da administração, a fermentação do espírito de liberdade e independência, os anseios de uma população que não suportava mais a desmesurada gastança da Corte lusitana, a frustração de ideais acalentados e a notícia da chegada da família real, fugida às pressas de Portugal, abandonando seu povo à ânsia expansionista de Napoleão.
Aos 18 de novembro de 1814 morreu, após dois anos de encerradas suas atividades profissionais. Seus dois últimos anos, viveu na casa do filho Manoel Francisco Lisboa (homenagem, certamente, que o Aleijadinho fez ao próprio pai, no reconhecimento da prole que houve de Narcisa Rodrigues da Conceição). Sua nora, Joana Francisca de Araújo Corrêa, deu à luz, em 1803, Francisco de Paula, neto que o gênio barroco conheceu. A mesma Joana Francisca, ainda viva em 1858, foi fonte para Rodrigo José Ferreira Bretas, primeiro biógrafo do arquiteto e escultor maior destas terras.
Obras e documentação
Por mais de cinco décadas, Antônio Francisco Lisboa realizou perícias e obras, nem sempre documentadas, espalhadas por acervos de colecionadores particulares e pelos atuais municípios de Ouro Preto (Museu do Aleijadinho, Museu da Inconfidência, Museu Casa Guignard, Museu do Oratório, Museu de Arte Sacra, Centro Dom Bosco Casa de Retiro, Igreja de São Francisco de Assis, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja de São Miguel e Almas, Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Igreja de São José, Igreja de São Francisco de Paula, Igreja de Sant’Ana, Igreja de São Bartolomeu), Mariana (Museu Arquidiocesano de Arte Sacra, Catedral da Sé, Igreja de São Pedro dos Clérigos, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Igreja de Nossa Senhora Rainha dos Anjos), Sabará (Museu do Ouro, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Igreja de São Francisco de Assis, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos), São João Del Rei (Museu Regional do IPHAN, Museu de Arte Sacra, Igreja de São Francisco de Assis, Igreja de Nossa Senhora do Carmo), Tiradentes (Igreja Matriz de Santo Antônio) Barão de Cocais (Igreja Matriz de São João Batista), Catas Altas do Mato Dentro (Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição), Caeté (Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Santuário de Nossa Senhora da Piedade), Rio Espera (Santuário de Nossa Senhora da Piedade), Felixlândia (Santuário de Nossa Senhora da Piedade), Nova Lima (Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar), Rio Pomba (Igreja de São Manoel), Santa Luzia (Igreja Matriz de Santa Luzia), Raposos (Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição), Pedro Leopoldo (Igreja de Nossa Senhora do Rosário), Itabirito (Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem), Belo Horizonte (Museu Mineiro), Congonhas (Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Basílica de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos), São Paulo (Palácio dos Bandeirantes, Museu de Arte Sacra, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand).
O número de trabalhos, cuja autoria é atribuída a Antônio Francisco Lisboa, oscila entre 141, por reconhecimento do IPHAN, em 1951, e 486, por reconhecimento de Márcio Jardim. Entre tais números, outros tantos, variando conforme o especialista que se consulte. Com autoria documentada, bem poucos, face ao total, independentemente da fonte que se eleja. Mas o que importa não é a discussão sobre o número de trabalhos atribuídos a Aleijadinho. O que há de relevante é o reconhecimento de uma existência dedicada à arte, expressando concepções que transcendem as de seu tempo.
Uma estratégia, que não deixa de ser comum, para negar a existência de um Aleijadinho com qualidades superlativas, eventualmente buscando reforço à tese da criação literária de um mito para a Nação, é impugnar seu trabalho como arte, por ausência de reconhecimento, como tal, por estrangeiros de passagem pelo Brasil, durante ou logo após sua existência. Não terá sito a primeira vez que um artista genial enfrentou, em seu tempo, e, mesmo, após sua passagem, dificuldades com críticos. Somente para constar, ficando em dois exemplos típicos do século XIX, devem ser lembrados os casos de Van Gogh e Georges Seurat: o primeiro vendeu apenas um quadro em vida, sendo que hoje não há quem não o reconheça como um dos grandes pintores da história da humanidade; o segundo, recusado pelo Salão de Paris, somente teve condições de expor Uma Tarde de Domingo na Ilha de La Grande Jatte, no Salão dos Independentes, estando críticos e público francês, até hoje, a lamentarem o fato de ser a única grande obra de sua nacionalidade que não se encontra no país de seu autor. Outros tantos casos há, de injustiças notórias contra artistas extraordinários, e estão documentados mais próxima ou remotamente.
Aleijadinho é apenas mais um caso de vítima de iniquidade praticada por alguns, o que não diminui o enorme valor do seu trabalho e faz surgir, dentre ensaios, registros históricos, opiniões e interpretações, mais que um ser humano de raros talentos. Mito e lenda, alimentados pelo sofrimento individual e majestade do conjunto da copiosa produção, ao longo de mais de cinco décadas de ardoroso trabalho, contribuem para maravilhar e gerar suspicácia, creditar e duvidar, conforme a inclinação ou predisposição mental de quem, diante da impressionante disposição e inacreditável habilidade técnica e artística, não pode ter outra reação, senão de admiração.