O homem é um cadáver antecipado, não lhe servem adiamentos, sua condição assim o afirma Fernando e obtempera Carlos, o heterônimo e o gauche. Assumir sem drama de plágio a literalidade do mote mais qualificado, sem divagações maiores, era o que permitia a ele escrever e dizer e pensar que pensava, como quem revertia a vida e glorificava a morte, dispensava a cura para admirar o sofrimento no passamento. Lenta agonia de viver fora do lugar ocupado, reservado pela opinião crítica da coletividade que impõe gostos, modas, pensamentos e convicções. Lamento nada cristão – talvez algum aspecto de religião universal apenas na ideia sacrificial, porém não em sua pretensão – por imaginar ou alcançar o pleno desejo, a completa abnegação, o ímpio desprezo e o nada como recompensa final; uma escala ritual para atingimento de culminâncias confusas, busca cada vez mais frenética de unificação de alma que cria ser fendida em personalidades violentas, quando nada mais era que um comum perverso que se imagina esquizofrênico, uma espécie de necrofolia cada vez mais acesa, atormentada e resfolegante. Expirar íntegro, sem nada dever pelo mal praticado a cada dia, inconfessado, no sigilo de ruas, becos, matas, celas e solitária conversão. Nessas condições, nada melhor que a satisfação de cozinhar e fazer reservas, como se a cada momento fosse um e nunca o mesmo.
O desamparo dos órgãos e instituições oficiais. A convivência familiar e comunitária insistentemente negada por quem julgava próximo ou com dever de proximidade. Finais de semana em acolhimento de porões, cultivando raivas e ódios, treinando sodomias e esfolamentos, consagrando práticas de comunicação espiritual pelo sofrimento imposto, pela lágrima obtida a custo, evisceração do mundo etéreo e inconsútil. A manga falida, o gado nos ossos e a pequena cidade, crua natividade do cerrado desertificando, a agricultura minguada, disputa pelo alimento, falta do mais elementar. A pele rasgando no contato com os espinhos da vegetação pequena e tortuosa, o sol ferindo; a chuva pouca, bem pouca, penetra no solo rachado e reconstitui rios que mais não se apresentavam que leitos arenosos cavados pelos animais, na busca quase inútil por água.
Artes de facas e de sangue em leitos cortados a partir da espádua, sal grosso e não mais para superar as dores da carne exposta. Fogo entre pedras, produzido com gravetos e palhas colhidas no dessecado de lavouras perdidas. Dias e noites a esmo. Se lhe perguntassem por família, embora criança, não saberia o que dizer, sua experiência era apenas da estranha liberdade de sobreviver sem favores, sem assistência, recriminações ou prazeres. Fome e sede, companheiras do sem limite do desnorteio, delírio, febre, infecção, do inexplicável fato de continuar, sem os seus ou sem querer. Deus era tão vago; melhor nem dizer, mas tinha a imagem de uma estrela de cinco pontas, sustentada por um grampo aguilhoando o círculo da realidade. Seus mais constantes companheiros, não por coincidência, eram bodes teimosos, de cor preta, lustrosos, representação de raça impura e decaída, subsistente pela força de um desequilíbrio.
Encontrado em agonia por um açougueiro de Itinga, que por ele desenvolveu a mesma afeição que o sinhô devotava ao escravo no eito, na cata, arruinado pelo banzo. Menino sem origem, não havia quem reclamasse. Ser servido de alimento e um catre era mais que podia sonhar. Gratidão é sentimento, não basta o trato ao estômago para que surja e force o peito para soluçar. Mas em tudo se aprende algo para o próximo dia. Cortar, carnear, descourar, preparar e salgar, habilidades eficientes em qualquer lugar que conhecesse. O que não se sabe não é necessidade; ler, escrever, adicionar e subtrair, trabalhar com letras e números, nada ainda útil ao seu modo de perseverar; foi assim até a adolescência caminhar para a vida adulta, época da vida em que alguma leitura foi importante para desaprender ou afastar a Revelação e impor em seu lugar o opróbrio, a ignomínia e a infâmia com odores e sabores que ele próprio não distinguia, mas em que intuitivamente e apaixonadamente acreditava como salvação pessoal.
O açougueiro tinha irmãs que costuravam, bordavam e tricotavam na cidade; não permitiram, por muito tempo, que o suplício daquela vida semiconsciente continuasse. Deram-no à Justiça, em Araçuaí, para que o melhor deliberasse em prol da criança. O mistério de uma existência sem berço, sem memória, sem pai nem mãe, sem parentes, vizinhos e referências; apenas um nome incompletamente bordado, já esgarçado e puído, por dentro da roupa: Genet. Nome francês demais para aquele menino, que foi alcunhado Febrônio Brasileiro, pois as aflições e a nacionalidade eram as únicas referências seguras do infortúnio que seu olhar invocava. Seu corpo noticiava histórico de sovas, queimaduras, sevícias, impressões perpétuas. Suas reações induziam que teria sido testemunha de muito mais do que as cicatrizes eloquentemente eram capazes de provar. A caridade judicial o recomendou a estabelecimento agrícola, no qual deveria permanecer até os vinte e um anos completos, se outro destino não lhe fosse antes ditado ou alcançado pelos esforços intermináveis de que era capaz.
A idade imprecisa, apenas estimada pelo médico da comarca, não foi benefício. Por mais de dez anos ficou esquecido, até que seu tamanho, força e façanhas internas não pudessem mais ocultar que o limite de permanência estipulado pelo juiz já havia sido de muito ultrapassado. Nesse tempo, tendo aprendido a ler e escrever rudimentarmente, firmou entendimentos próprios, discrepantes do estabelecido pela religião e pela moral reinantes. Leituras desencontradas, proporcionadas por quem não se sabe, da Bíblia e de textos místicos, notícias de Madame Blavatsky, satanismo, anticristianismo desenvolto, teosofia embaralhada, sensações físicas, táteis e auditivas o levavam ao êxtase. Foi desinstitucionalizado sem profissão, emborcado em práticas de imitação que serviriam a propósitos vários quando de sua chegada a Belo Horizonte, onde pretendia estabelecer-se com habilidades que ainda estava por descobrir. Aprendeu e desenvolveu um sincretismo de ritos sacrificiais que somente a ele e a um deus maldito faziam sentido.
Internações não oferecem biografia, apenas informações superficiais sobre nome (autoatribuído, imposto, consentido, reclamado), idade (efetiva ou presumida), filiação (frequentemente incorreta, se conhecida), existência de irmãos, naturalidade, etnia, religião, escolaridade (deficiente, quase sempre), altura, condições de saúde, data de alta, soltura, reinstitucionalização e pouco mais (talvez menos). É fácil distinguir habilidades e eficiência em fugas, furtos, roubos, estelionatos, falsificações, tráfico de drogas, latrocínios e homicídios, como também perceber ou intuir motivos para recolhimento, mágoas, depressão, convulsões, acusações, esquizofrenia, psicoses, medicações, entorpecimento, fracasso. Muito depende do acaso e do imponderável.
As estradas, ruas, praças e outros logradouros públicos, indistintamente, não dignificam nem honram os que passam seus dias perambulando, sem alvorada e sem propósito, seguindo sua sina, seu fado, como coisa inevitável. Uma escola religiosa, a boa vontade da cidadania, uma iniciativa governamental, poderiam alterar rumos e vidas. O epicentro da compreensão de uma faixa de nominados desajustados estará em alguém que se distingue. O adulto procurou compreender a criança e o adolescente, descrevendo a aridez de seu mundo e de sua experiência. A marginalidade, as prisões, a violência em todas as suas manifestações, tornaram-se matéria prima para uma escrita não literária, despoetizada, arrogante, carda, beirando o desprezível, como espelho autoral. Não foi descoberto pela intelectualidade, nem um mecenas qualquer, de menor projeção, o abraçou.
Era homem de estatura mediana, 1,73 m, nem tanto magro, com seus 70 kg, feições estranhas ao primeiro olhar, assimétricas, ausência de barba ou bigode e pele vincada, apesar de jovem adulto. Canelas finas suportavam quilômetros e quilômetros de descaminhadas tortuosas, suores encharcantes, secura de poeira fina, piçarra trincando os pés, gerando curtos sangramentos. Abdome e peitoral ligeiramente expandidos, como se alguma doença o acometesse, o que era reforçado pelos braços finos e longos, terminando em mãos de aparência forte e ossuda. Olhos de um castanho claro, quase amarelado, que davam impressão de febres e padecimentos que transmitiam desolação e energias contidas, prestes a serem liberadas. Ginecomastia pronunciada, que não involuiu no final da adolescência, causando impressões, no conjunto, poderosamente inquietantes. Cicatrizes contavam história de violência insubmissa.
O servo da luz, epifania em momento de apartado padecimento, após seis anos aguardando julgamento por um crime improvável, improvado, talvez acontecido na penumbra móvel ente a imaginação e a realidade. Divisa que arrasta, distancia e vulnera, que se resgata pela escrita. Assim, Febrônio, nome assumido na consciência de ser Genet, produziu seu primeiro livro, infestado de incompreensões, desvios, reprovações, em que já na página inicial discorria:
E descobriu-se que a Terra era redonda e que a esfera era a principal das formas, que inicia e termina em qualquer ponto de si mesma, dobra-se e redobra-se sobre si mesma, representa o universo, a abóbada celeste, de que este mundo é representação menor; o próprio homem nada mais é que uma esfera dentro do mundo, situado na abóbada celeste, que se representa no sem início e sem fim do universo.
A viagem do homem, na peregrinação triste a que condenado por culpa da mulher, teve começo no desconectado Jequitinhonha, de onde todo sofrimento escapa para retornar com arrependimento, se a alma do pecador é cristã. Somente não retorna, ou nega arrependimento, a alma maligna de quem se ligou ao decaído, que fica assim à espreita de poder reiniciar sua peregrinação no estorvo do Jequitinhonha do Inferno, para queimar por toda a eternidade.
Os que se guiarem pela Luz, que nessa terra tem apenas um servo, terão seu arrependimento assegurado, com o que serão chamados, no juízo final de cada vida que se encerra, para o lado direito de Deus.
Com uma brochura à mão e outras tantas para entregar aos que demudassem ao credo de sua pregação, destruía a voz na Praça Sete, à frente do antigo Cine Brasil. Trabalho inútil, sem recompensa. Mas nada o abalava, e mais alto pronunciava seus sermões e imprecações, que ao espírito lúcido seriam insuscetíveis de convencer, quanto mais ignorado fosse. Discursava para si, mais que para qualquer plateia, e saltava à jugular sem compreender, no início, que estava à busca de uma vítima, mais que de um interlocutor. E filosofava a maldade divina, contraposta à necessária bondade e justiça do onipresente; duvidava, tanto pior fosse Deus, de Sua existência. Impecável lógica subversa: a maldade Daquele que, por definição, deveria ser infinitamente bom e justo, que deveria ser perfeito, se revela no caráter destrutivo da natureza, que cria para a morte; o que existe morre; se a vida é o bem e a morte é o mal, criar a vida, para que se extinga, é ser mau e a maldade contradiz Deus, que por isso não existe; do adjetivo à negação do substantivo.
Aprender é habilidade que distingue e faz dos humanos o que são, apesar de condenados à morte desde o nascimento, por defeito, injustiça ou inidoneidade da natureza. Aprender que Deus é quimera, porque sendo o que é, tanto mais perfeito em ser contraditório ao bem, menos é o que deveria ser e, portanto, inexiste, foi uma jornada perigosa e incomum. Aprender a atingir um órgão vital foi mais fácil, ofício de magarefe, algo que não se esquece, ainda que a infância se desfaça entre alucinações depressivas. Associar aprendizados é questão de tempo e determinação. Com trabalho, noites de delírio, sombrias audições de espectrais aparições, lacerações, vômitos, jejuns, desidratação, confusão mental, aproximação admirada do fim e o encontro no reflexo no fundo da privada serviram para catalisar transformações que o redefiniriam.
Um homem obscuro, comum, pacato, diriam até antissocial, que a ninguém incomodava, insuspeito, mesmo que por vezes tenebroso e carregado seu semblante, era voz corrente na vizinhança que sequer cumprimentava. Fracos e desgarrados, presas ocasionais de cuja ausência não se noticiava, receberam no peito o sinal do servo da luz. Sempre do sexo masculino, maltratados, prontos para o que a natureza a todos reserva na temporalidade perversa da negação de toda bondade. Corpos começaram a aparecer em ermos indistintos, em situações denunciadoras de propósitos incompreensíveis para quem afastado das competências psiquiátricas. Indagações, especulações disparatadas, sensacionalismo e medo. A inteligência de um ataque não está somente ligada à efetividade no abate, como igualmente à atenção com os próprios rastros. Evitar os mesmos locais e situações, privilegiando a identificação dos desprendidos e descuidados, de compleição inane, inaptos a resistir.
O descuido deriva da autoconfiança que automatiza e deixa de perseverar nas minúcias, algo de que se deve abster. O tempo passa e desprevine. Aníbal, um jovem franzino, menor do que o suposto para a sua idade, com o peito bordado com o símbolo da luz em linha grossa, sangrando por todos os orifícios, supliciado ritual, metódica e incansavelmente, foi deixado anatomizado, irreconhecível em seu flagelo. O imponderável, no entanto, ocorre com maior frequência contra a arrogância. Mutilado, açoitado, violado de tantas formas e vivo, primeiro corpo ainda não decomposto, primeiro testemunho, primeira confirmação necessária.
Tão difícil quanto sobreviver foi dizer o acontecido coerentemente ou de forma que se pudesse montar, com frações aparentemente desconexas, uma história para múltiplos atentados, um perfil onde coubesse tanta insanidade. Costas lavradas e no peito uma mensagem, gradativamente aperfeiçoada, dolorosamente encarnada, o servo da luz revelando seu devaneio desprovido de toda inocência, reproduzindo e aumentando, deformando o que foi seu sofrimento. Uma espécie de purga que não cura os males da depauperada infância, os medos e terrores passados, fantasmas e assombrações que o atormentavam. Um alívio horrorizado, homoerotizado.
Prender aquele homem que se sabia atuar sozinho não seria tarefa simples, demandaria tempo policial, desolações e desesperos familiares, temor nas ruas da capital mineira, mães protegendo sua cria e pais jurando vingança. Esforço incomum foi organizado, catorze meninos supliciados e o segundo sobrevivente surgiu quase incompreensivelmente. O suficiente para a ação policial e o intolerável para diversas famílias. Jornais noticiando, autoridades se decompondo e o acaso em terreno baldio; uma visão, correria, gritos, ajuntamento de gente desnorteada e um grupo preparado para efetuar a prisão. Garantir a integridade do flagrado é o mais difícil dever a cumprir e sem possibilidade de justificar. A república garante que seus servidores não violarão o incriminado, mesmo no flagrante mais abusado e confirmado, mesmo no repúdio desassombrado de toda população. O compromisso político mais importante é aquele que chega a degradar o servidor condenado a materializar o que não poderia ser previsto para o motivar.
O tribunal do júri, a despeito de tudo, não foi convocado; laudos psiquiátricos, profissionais renomados, afirmando doença mental de prognóstico incurável, impossibilidade de entender o caráter criminoso da conduta, negativa de responsabilização e de penalização. O que fazer com quem não sente culpa, remorso ou pesar pelas muitas mortes cometidas? O que fazer com alguém que se julga mensageiro de uma divindade malsucedida, que cumpre missão e que assim se consagra à alegria de servir? A vida e não a morte, ao seu olhar, seria o maior crime, se não cumprisse a certeza que tinha do destino escrito e confirmado.
O desconcerto da máquina de repressão criminal pode significar encarceramento sem sentença condenatória. Seu destino não poderia ser distinto, e não foi. Tratamentos para manter a mente apagada. Foi descoberto octogenário, esquecido, incapacitado. Sua vida confirmou todas as mortes. Sua morte confirmou a morte de Deus? Sobre ele escreveu-se desde então, Febrônio ou Genet, efêmero eterno. Para ele, morrer era questão de confirmar a imperfeição, zombar da bondade afirmada pelas religiões, gozar, volúpia e impudência. Mas sua morte também seria, para muitos, a justiça suprema e a confirmação de tudo quanto sua existência contestou; morte tardia que o sentimento de justiça não sacia.